Onda de livros sobre mães e filhas asiáticas ampliam visões sobre a maternidade

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Quando estávamos andando em grupo num passeio da escola, alguém disse que, já que nasci mulher, com certeza quero ter filhos um dia. Como elas podem pensar dessa forma? É só começar a sair sangue daquele lugar que já se sentem mulheres e, sendo assim, querem dar à luz outra vida. Como conseguem acreditar que isso é uma coisa boa?”

O trecho é do diário da menina Midoriko, uma das personagens mais vibrantes do romance “Peitos e Ovos”, da japonesa Mieko Kawakami, estrela literária publicada agora pela primeira vez no Brasil. E não é a única.

Kawakami integra uma leva notável de autoras que discutem a relação de mães e filhas a partir da perspectiva asiática, uma boa oportunidade de ampliar ainda mais as fronteiras de um tema que inunda as livrarias brasileiras.

Questões envolvendo mães e filhas variam radicalmente dentro de um mesmo país -afinal, a maternidade é um tema tão plural quanto existem pessoas no mundo-, mas há algumas especificidades japonesas que Kawakami nota durante entrevista a este jornal.

“Podemos dizer que há certa tendência: entre as mães das classes mais abastadas, são mais frequentes o abuso educacional em que sobrecarregam as filhas de estudos e atividades extracurriculares, e a interferência excessiva na vida das filhas”, aponta a escritora.

Já entre as mais pobres, diz ela, é mais comum a obrigação de crianças de se tornarem cuidadoras de seus familiares vulneráveis. “Em ambos os casos, as mães tentam controlar as filhas: as primeiras, tomando a autonomia delas, e as segundas, incutindo-lhes sentimento de culpa.”

O livro de Kawakami compõe uma teia abrangente de relações maternas. A narrativa é protagonizada por Natsu, uma aspirante a escritora sem filhos que recebe a visita de sua irmã mais velha, Makiko, com a filha adolescente Midoriko, o que engatilha lembranças sobre a infância compartilhada pelas duas.

Homens são praticamente ausentes da obra, que se dedica a pensar como a imensurável carga de trabalho doméstica que recai sobre as mulheres e suas filhas pode deixar marcas das quais não se livra por gerações.

“Minha mãe vive trabalhando e está sempre cansada, e metade da culpa por ela estar assim é minha. Não, é tudo culpa minha”, anota a garota Midoriko em seu diário. “Quando penso nisso, fico desesperada. Quero virar adulta logo, quero trabalhar bastante para poder dar dinheiro para ela. Já que não posso fazer isso agora, quero ser boazinha com ela. Mas não consigo. Às vezes só choro.”

A pesquisadora Lais Miwa Higa, que faz doutorado sobre a militância asiático-brasileira na Universidade de São Paulo, lembra que as relações de mãe e filha nas culturas asiáticas costumam remeter à figura da “tiger mom”, marcada pelo altíssimo nível de exigência e instinto de proteção.

“Quando Michelle Yeoh ganhou o Oscar, em março, eu e minhas amigas asiáticas comentamos que nossas mães iam passar a semana falando ‘e você, quando vai ganhar?'”, brinca a antropóloga -que sublinha, contudo, o perigo de escorregarmos em estereótipos ao observar essas características de forma enclausurada.

Outra imagem predominante nesse tipo de relação é a da mulher dura e calada, de silêncios eloquentes, algo que remete ao delicado romance “Frio o Bastante para Nevar”, de Jessica Au.

O livro acompanha uma filha que convida sua mãe a passar férias no Japão, uma terra estrangeira para as duas, na expectativa sutil de tentar diminuir a distância emocional entre elas. A jovem quer vê-la como uma pessoa, não apenas como uma mãe -figura das mais esquivas.

Quem espera um livro com grandes epifanias pode se decepcionar. “Eu estava buscando uma sensação de vida real, não uma narrativa redonda”, afirma a escritora sobre seu romance curto e premiado. “E a vida em geral tem um fluxo mais bagunçado.”

O que move a protagonista, nunca nomeada, é a vontade de se conectar com a outra. “E conforme caminhamos para o final, ela não necessariamente consegue o que quer, mas começa a aceitar o que é essa relação. Que tem uma parte de sua mãe que ela nunca vai entender.”

É algo que toca num ponto inusitado da biografia da própria escritora, que é australiana. Foi depois de escrever o romance que ela mesma descobriu que sua mãe não tinha nascido em Hong Kong, como sempre supôs, apenas crescido lá. Suas raízes estavam na Malásia, mas nunca ocorrera à mãe contar isso a ela.

Paira a mesma sensação de coisas não ditas entre suas personagens, numa relação de insinuações gentis e educadas que, segundo Au, também faz parte de sua própria família.

“Nos termos da cultura em que cresci, você não discorda abertamente da outra, não diz ‘não’ de forma definitiva. Você fala de um jeito mais indireto, tem que prestar atenção a sugestões sutis, ao que está sendo dito por trás das palavras.”

Essa busca da personagem de Au por desmistificar a figura materna vem, não por coincidência, com a perspectiva de ela própria ficar grávida em breve -o que multiplica as interpretações possíveis para o livro de maneira fascinante.

A decisão de formar ou não uma família é algo que também perpassa todo o romance de Kawakami. A escritora diz que, no Japão, o clima de julgamento que recai sobre as mulheres tem passado por uma inversão curiosa.

“Antes, as mulheres tinham que ter um motivo e uma firme determinação para não ter filhos. Hoje em dia, para ter um filho, também é preciso ter um motivo e uma firme determinação. Por exemplo, as pessoas dizem para quem decide ter filho: como você é corajosa! Como você foi arranjar tamanha dor de cabeça?”

O que interessa é que visões múltiplas sobre a experiência de ser mãe têm se multiplicado, como se atesta ainda por duas obras recentes, de origem sul-coreana, que abordam maternidade de pontos de vista completamente distintos destes.

“Aos Prantos no Mercado”, da americana Michelle Zauner, é uma coleção desoladora de lembranças da autora sobre sua mãe, morta de câncer, disparadas pelas comidas típicas da Coreia que elas costumavam dividir; já “Sobre Minha Filha”, de Kim Hye-jin, tece o ponto de vista de uma mulher severa e homofóbica que precisa lidar com a volta da filha lésbica para casa.

Mieko Kawakami tem um resumo contundente para o que tem acontecido no mercado literário de seu país. “Quando um homem escrevia sobre família, isso era reconhecido como uma obra que tratava da nação, mas quando uma mulher escrevia sobre família, eram consideradas meras anotações do seu cotidiano.”

“Mas há cerca de 15 anos, quando iniciei a carreira, muitas escritoras contemporâneas já tinham produzido obras incríveis. Nesse sentido, me considero uma felizarda.”

PEITOS E OVOS

Preço R$ 79,90 (480 págs.); R$ 54,90 (ebook)

Autoria Mieko Kawakami

Editora Intrínseca

Tradução Eunice Suenaga

FRIO O BASTANTE PARA NEVAR

Preço R$ 64,90 (96 págs.); R$ 44,90 (ebook)

Autoria Jessica Au

Editora Fósforo

Tradução Fabiane Secches

WALTER PORTO / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS