FOLHAPRESS – Onde vemos a luz de um holofote iluminando um par de saltos, Ela vê Marie. Ajoelhada diante da figura que não podemos enxergar, mas imaginar, a mulher beija o salto, as canelas e coxas de sua amada -e prosseguiria, se não fosse interrompida por um tapa na cara.
Ela, personagem interpretada por Jeyne Stakflett, batiza o monólogo em cartaz na SP Escola de Teatro. Marie é apresentada ao público através da imaginação e das reclamações de Ela que, obsessiva, não consegue se libertar da relação tóxica.
É difícil ter certeza se Marie de fato existe ou se é fruto da atordoada mente da protagonista. “Tenho um desejo incontrolável de outro tempo que não seja esse. Me refugiei nesse imaginário das mulheres que criei pra mim”, anuncia a personagem, de paletó e com pó branco no rosto.
Em seguida, tira a maquiagem -inspirado no clássico “O Boulevard do Crime”, filme de 1945 de Marcel Carné- e a roupa social para ficar apenas de lingerie e roupão.
A partir daí, passa a expressar seu sofrimento exagerado por uma paixão da qual ela não consegue se desvencilhar, apesar das traições e violências psicológicas desferidas da amante.
Toda a trama se passa no que poderia ser a sala do casal, abarrotada de estruturas que lembram teias. “Ela vai tecendo essa história. Como uma aranha, quer prender o inseto para impedi-lo de fugir”, diz Stakflett.
As caras e bocas exageradas, somadas ao jogo de holofotes e representações que poderiam ser originárias de sonhos -como morder uma maçã após retirá-la de uma gaiola de pássaros- desafiam o limite entre realidade e fantasia.
O espetáculo presta homenagem ao cinema surrealista francês da década de 1930, em especial a obra de Jean Cocteau, diretor de “O Sangue de Um Poeta” e autor de “O Livro Branco”, no qual descreveu relações sexuais e afetivas com outros homens ainda em 1928. “Queria ser amada como uma lésbica do século 16”, lamenta Ela em um de seus devaneios.
A alusão é a “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, de Céline Sciamma, melhor roteiro do Festival de Cannes de 2019, que narra a descoberta de um intenso amor entre uma retratista e uma aristocrata na bretanha francesa.
A trilha sonora de Villa-Lobos, resgatada dos filmes de Glauber Rocha, ajuda a transmitir a intensidade das emoções de Ela ao público -interrompida apenas por um momento de descontração ao som de Madonna.
“Buscamos a comunicação emocional com o público, para além da representação. Ela está à flor da pele, em busca da libertação desse relacionamento”, explica Dionísio Neto, diretor e roteirista do espetáculo.
Algumas narrações da personagem retratam desavenças comuns no cotidiano de casal, como quando Ela se queixa de que Marie deixa as calcinhas penduradas no box, ou que deixa a casa desarrumada quando sai.
Os diálogos aparentemente inofensivos são constantemente interrompidos por fatos mais graves, como as traições repetidas de Marie, ou pelas variações de humor de Ela entre desespero e ira.
“Ela quer me ver morta, um fantasma das infinitas mulheres que já fui!” esbraveja, após ser rejeitada pela companheira muda e invisível. Mas em seguida, lamenta: “sou o fantasma da mulher que poderia ter sido ao seu lado”. A impressão é que, no fim, Ela parece estar presa na armadilha que ela mesma criou.
ELA
Quando Sex., às 20h, e sáb., às 18h e 21h. Até 1º/7
Onde SP Escola de Teatro, Unidade Roosevelt pça. Franklin Roosevelt, 210, São Paulo
Preço R$ 20
Elenco Jeyne Stakflett
Direção Dioniso Neto
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress