Peça ‘Neva’ retoma morte de Anton Tchékhov com trama que fala sobre atuação

(FOLHAPRESS) – “Interpretem a morte de Anton” pede, aflita, Olga Knipper aos seus colegas de cena. Apesar de devastada pelo luto, a atriz do Teatro de Arte de Moscou não consegue lembrar o momento em que seu marido, o dramaturgo Anton Tchékhov, morreu de tuberculose, ainda que estivesse ao seu lado.

Apesar do esforço de atuação, a cena não acaba bem. Frustrada, Olga bate repetidas vezes no peito de seu colega Aleko -que após tossir violentamente, parece estar morto- enquanto protesta: “Não foi assim!”.

“Neva”, escrita pelo dramaturgo chileno Guillermo Calderón, conta outra história em paralelo, o massacre do Domingo Sangrento quando, em 22 de janeiro de 1905, a guarda imperial russa matou milhares de pessoas que se manifestavam de forma pacifica contra o czar em frente ao Palácio de Inverno, em São Petersburgo.

Nesse dia, Olga Knipper, papel de Patrícia Selonk, Aleko, vivido por Felipe Bustamante, e Masha, interpretado por Isabel Pacheco, três atores que se preparam para estrear no teatro da cidade, ficam presos no edifício enquanto as ruas estão tomadas pela violência.

Eles esperam pela incerta chegada dos outros atores e do diretor Aleko e Masha passam a encenar, a pedido de Olga -convencida de não ser mais capaz de atuar-, momentos de vida de Tchékhov. Seguem-se cenas de aflição, nas quais é possível acompanhar a angustia do escritor após seu diagnóstico, que possivelmente o impedirá de viver.

A dramaticidade das cenas são uma tentativa de dar emoção à descrição da morte de Tchékhov, documentada de forma “romântica e fria”. “Algumas cartas dizem que ele tomou uma taça de champanhe e morreu. Mas hoje sabemos o que significava ter tuberculose na época”, diz Selonk.

O mergulho na história do casal é interrompido continuamente, seja por uma Olga obcecada em relembrar seu trauma ou por uma intervenção cômica de Aleko -que, mais próximo do cristianismo russo de Liev Tolstoi, tenta encontrar resposta na vida campestre e em Deus.

As personagens param sua encenação e retornam, então, ao momento presente: seu enclausuramento durante o Domingo Sangrento. “O humor e o drama já se alternam no texto de Calderón, mas acredito que nossa montagem potencializa isso”, explica o diretor Paulo de Moraes.

Olga Knipper foi esposa de Tchékhov de 1901 até sua morte, em 1904. Mas, além desses fatos, sua personagem em “Neva” é ficcional. “Ela está totalmente voltada para si”, explica Selonk. O distanciamento da turbulenta conjuntura fica claro no momento em que Masha comenta que o ministro foi assassinado e, espantada, Olga pergunta como. Sua companheira revela que isso acontecera há seis meses. “Anton tinha acabado de morrer”, responde Olga, paralisada no seu tempo particular.

Os saltos entre encenação e realidade, tragédia e comédia, são potencializados pela disposição de diferentes tipos de microfones por todo palco. Para que possam ser ouvidos pelo público, os atores devem se mover em cena de maneira a chegar até um microfone antes de iniciar sua fala.

“A ideia é colocar o texto em primeiríssimo plano, fazendo com que ele possa chegar ao público com detalhes de sutileza e, em outros momentos, com a rispidez de um show de rock”, explica Moraes. A sensação é possibilitada pela diferença de sonoridade entre os dispositivos, que ora reproduzem a voz de forma natural, outrora parecem deixá-la mais metálica ou distante, intensificando a imersão no que parecem ser memórias de Olga.

A disparidade entre a quantidade de microfones e os personagens em cena provoca a percepção da falta dos outros atores -aqueles que não conseguiram chegar devido ao Domingo Sangrento e que, provavelmente, foram vitimas do massacre.

Apesar de ser palco de “Neva”, o episódio histórico parece um elefante branco na relação entre os atores, que citam de forma tímida o que está acontecendo fora do teatro. As referências ao mundo externo aumentam com o isolamento, até eclodirem em um conflito que traz a luz a dificuldade de Aleko e Olga, de origem abastada, de se conectarem com o presente.

“A história passa como um fantasma”, acusa Masha, que brada: “não se sofre no teatro, se sofre na vida!”.

Além da morte de Tchékhov e do Domingo Sangrento, o texto de Calderón instiga o debate sobre o sentido do fazer artístico em tempos de conflito, reflexão intensificada pela metalinguagem do espetáculo.

Ao fazer referência ao rio Neva, que corta a cidade de São Petersburgo, o dramaturgo busca uma aproximação com o rio Mapocho, que corta Santiago, -e que também ficou “manchado de vermelho” com os mortos da ditadura de Augusto Pinochet, em 1973.

ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS