Peça usa ‘Sítio do Picapau Amarelo’ para fazer crítica a Bolsonaro e ao agronegócio

O cheiro forte de terra talvez seja a primeira coisa que o público vá sentir ao entrar na arena de rodeio montada no galpão do Sesc Pompéia, em São Paulo, para assistir ao espetáculo “Agropeça”, que celebra os 30 anos do grupo Teatro da Vertigem.

A produção levou 20 toneladas de terra ao Sesc para encenar o que enxergam como um tratado sobre os últimos quatro anos em que o agronegócio tomou o protagonismo das discussões econômicas e políticas do Brasil sob a chancela de Jair Bolsonaro.

A partir de elementos como a figura do peão de boiadeiro, o locutor de rodeio e a liturgia que toma conta de cidades interioranas, principalmente de São Paulo, o grupo usa de personagens clássicas do “Sítio do Picapau Amarelo”, de Monteiro Lobato, para investigar a influência do agronegócio no país.

Para enfrentar as dívidas que corroem a magia do sítio, Pedrinho sugere a uma alegoria de Dona Benta que a família sedie uma festa de rodeio para arrecadar dinheiro. Assim começa o tratado analítico que o grupo propõe acerca da sociedade brasileira e também do “Sítio” de Lobato.

Há uma década, o autor é alvo de críticas que pretendem desde um cancelamento completo de sua obra até a revisão de passagens com termos considerados racistas e elogios ao integralismo, tido como o braço brasileiro do fascismo no século 20.

A dimensão crítica que permeia a obra, contudo, não fazia parte da concepção do projeto, em 2018. Antes de Bolsonaro se eleger, o diretor Antônio Araújo já planejava um espetáculo sobre a presença crescente do agro na cultura brasileira por meio da música sertaneja, abarcando seus primeiros passos, na década de 1980, até os dias atuais, com os subgêneros como o feminejo.

A peça vem na esteira de uma onda de obras voltadas ao universo agro nos pilares da cultura pop brasileira, do remake de “Pantanal” no ano passado e a estreia de “Terra e Paixão” na próxima segunda-feira na Globo ao sucesso de Ana Castela, maior representante do agronejo, que ocupa agora o topo das paradas musicais.

Mas o projeto tomou outros contornos com a vitória de Bolsonaro e a crescente exponencial do agronegócio enquanto um elemento central da política brasileira.

Assim, a peça propõe reflexões que vão da luta antirracista —a partir da voz da Tia Nastácia, vivida por Mawusi Tulan— ao papel exploratório do Reino Unido sobre o mundo —por meio de Visconde de Sabugosa, interpretado por James Turpin—, num amontoado analítico que nem sempre deixa claro os caminhos que a dramaturgia pretende percorrer.

“Não posso pensar que um clássico seja inatingível”, diz o roteirista Marcelino Freire. “Vamos conversar à luz dos nossos tempos e à luz de onde a figura de Lobato não conseguiu alcançar. Podemos pegar esta obra e, pelas entrelinhas, fazer uma leitura do Brasil.”

Entram ainda debates sobre gordofobia, machismo, abuso sexual, homofobia e transfobia, assuntos que, para o escritor, representam um perigo para o universo agro “desde sempre extremamente heterossexual” ao ameaçar suas estruturas de poder.

Embora celebre as três décadas de atividade do Teatro da Vertigem, “Agropeça” não foi uma produção pensada para a data, mas um acaso resultante de uma série de situações, da pandemia de Covid-19, que congelou o mercado da cultura, às negativas de editais e pedidos de patrocínio.

“Existe a ideia de que há uma facilidade por já termos 30 anos, mas a impressão é a de que sempre estamos começando do zero”, diz Antônio Araújo, diretor e co-fundador do Teatro da Vertigem. “Cada vez você tem que recomeçar e se provar de novo. É uma mentalidade do país. No Brasil, a cultura precisa sempre voltar para o fim da fila.”

As adversidades, no entanto, fazem parte da história do Vertigem, que fez carreira com produções que desafiavam os dogmas do teatro paulistano. Desde sua obra de estreia, “O Paraíso Perdido”, encenado na Igreja de Santa Efigênia, o grupo buscou fundir sua arte com os espaços da cidade.

Em 1995, eles usaram a estrutura do Hospital Humberto Primo para narrar “O Livro de Jó”, enquanto em 2000 encenaram “Apocalipse 1,11” no Presídio do Hipódromo, como era chamado o “depósito de presos” em São Paulo que foi fechado diversas vezes por ser inadequado para uma prisão.

Em 2006, o grupo levou ainda o público a navegar nas águas do rio Tietê com a montagem de “BR 3” e, em anos seguintes, tomou as ruas do Bom Retiro e andaimes na área externa do Sesc Avenida Paulista.

Em comparação, a arena de “Agropeça” parece até uma produção menor, mas Antônio Araújo diz que foi uma das obras mais desafiadoras de sua trajetória, que envolveu ir até a Festa do Peão de Barretos, o maior rodeio da América Latina, para entrevistar profissionais do setor e se inspirar.

O espetáculo, com duas horas de encenação, conta com citações constantes à música-tema do seriado de TV, composta por Gilberto Gil, memes como o do patriota do caminhão, clássicos como “Romaria”, à música sertaneja e a potência agro que transformou o sítio em uma distopia.

O papel de Narizinho é exemplo disso. A garota do nariz arrebitado agora lida com os sucessivos abusos que sofreu, presumidamente de Pedrinho, enquanto Emília toma as rédeas da narrativa.

Mas se há baluartes das lutas contemporâneas, há quem as rechace. Dona Benta reproduz a figura da senadora Damares Alves ao discursar a favor da moral e dos bons costumes, dando ao público a chance de desconstruir conceitos sobre mocinhos e vilões.

AGROPEÇA

Quando 4/5 a 11/6, de qua. a sáb, às 20h, e dom. às 17hOnde Sesc Pompéia – r. Clélia, 93, São Paulo

Preço R$ 25 (meia) e R$ 50 (inteira)

Classificação 14 anos

Autoria Marcelino Freire e Teatro da Vertigem

Elenco André D’ Lucca, Andreas Mendes, James Turpin, Lucienne Guedes, Mawusi Tulani, Paulo Arcuri, Tenca Silva e Vinicius Meloni

Direção Antônio Araújo e Eliana Monteiro

Acessibilidade Há acesso e circulação sem barreiras físicas, sanitário adequado e local reservado para cadeirantes com acompanhante

BRUNO CAVALCANTI / Folhapress

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