SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Assembleia Legislativa de São Paulo se mexeu após o caso de racismo denunciado pela deputada estadual Thainara Faria (PT) e, numa mobilização que aproximou o presidente da Casa, André do Prado (PL) e bancadas da esquerda, prepara medidas para coibir novos casos de discriminação.
As ações abrangem a instalação de um aparelho de identificação biométrica (por impressão digital) para os parlamentares registrarem presença, a distribuição de uma cartilha com orientações contra várias formas de preconceito e a criação de um curso obrigatório sobre o assunto.
Thainara, negra e em seu primeiro mandato, revelou no dia 31 de março que uma servidora tentou impedi-la de assinar o livro de presença no plenário por não tê-la reconhecido como parlamentar, embora estivesse com o broche dourado usado para identificar os deputados.
Ela relatou o caso num vídeo de rede social, chorando, e disse que não se tratava de um mal-entendido, mas de “racismo puro, e do pior tipo, que é o estrutural”. O episódio levou à abertura de um processo administrativo contra a funcionária, que poderia ser punida internamente.
Mas Thainara quis tentar outro caminho, enquanto escutava colegas da direita na Assembleia acusando-a de buscar holofotes com a denúncia e de estar prestes a destruir a vida da servidora.
A deputada defendeu uma solução, para ela, pedagógica para o ambiente e tentou evitar que seu mandato fosse “guetizado”. Ela usa a expressão para se referir ao risco indesejado de ter seu trabalho colocado num gueto de vitimização, como se o resto de sua atuação fosse secundário.
Apesar da oposição política entre ambos, a petista ganhou um aliado em André do Prado, que chegou à presidência da Assembleia em articulação do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). A pressão por atitudes da Casa foi endossada pelas bancadas do PT e do PSOL.
André já vinha citando planos de instaurar um sistema de governança corporativa, incluindo um pacote de compliance (regras de conduta conforme as leis e o regimento).
A ideia inicial era distribuir internamente uma cartilha focada em assédio às mulheres, depois que a legislatura anterior ficou marcada pelo processo de importunação sexual aberto após a então deputada Isa Penna (PC do B) ser apalpada pelo então colega Fernando Cury (União Brasil) no plenário.
Com o caso de Thainara, o presidente ouviu apelos para que o material fosse ampliado e abordasse temas como racismo, LGBTfobia, intolerância religiosa e capacitismo (forma pejorativa de se referir a pessoas com deficiência). Deputadas do PT e do PSOL também reivindicaram a oferta de treinamento sobre as questões.
Enquanto os conteúdos eram elaborados, a Casa começou a testar a identificação biométrica. Em fase de implementação, o leitor de digitais ainda funciona em paralelo com os cadernos de presença, mas a ideia é que o esquema de papel e caneta seja substituído pela solução eletrônica.
Thainara relatou que, no dia em que foi até os livros de presença após participar de uma cerimônia em homenagem a –ironia do destino– pessoas e entidades que lutam contra o racismo, a servidora a advertiu que a assinatura ali era “só para os deputados”.
Ao reagir, ela disse ter ouvido a funcionária reclamar: “É difícil”.
Uma das parlamentares mais jovens da Casa, com 28 anos, a petista usava tranças no dia do ocorrido, o que ela acredita ter reforçado o estigma racial atrelado à discriminação. Para ela, que agora está com os cabelos soltos, a biometria evitará que outros passem pelo mesmo constrangimento.
“Este espaço não está acostumado a ter pessoas como eu transitando por aqui”, diz à Folha de S.Paulo a deputada, que se veste de modo mais informal que a média e deixa tatuagens à mostra. “Eu, com orgulho, me pareço muito mais com as faxineiras daqui do que com os deputados.”
Thainara, formada em direito e pós-graduada na área constitucional com extensão em economia, diz que nunca acreditou que penalizar a servidora seria a solução e que, por sua condição de parlamentar, possui ferramentas para buscar algo mais efetivo em prol da causa.
A deputada denunciou o fato formalmente no SOS Racismo, órgão da Assembleia, e mandou ofício para a presidência da Casa cobrando providências. Ela diz que, se o caso tivesse sido fora dali, teria recorrido aos meios legais habituais, o que é sua recomendação a cidadãos comuns que sofrem ofensas.
Thainara diz não ter visto mais a funcionária, deslocada para outra função, e que nem sequer sabe o nome dela, mas a perdoa. “Pedi que o processo administrativo não prosseguisse, mas que o Legislativo tomasse atitudes para coibir novas situações e agisse de maneira educativa.”
Na última terça-feira (18), a petista foi à tribuna dizer que se sentia “contemplada e agradecida” pela postura de André do Prado e descreveu como eficazes as medidas anunciadas para que a Casa incentive o letramento racial e ajude a espraiar a causa da igualdade. “O nosso papel na sociedade é pedagógico.”
O deputado do PL discursou na sequência, confirmando o arquivamento do processo contra a servidora. “As ações que anunciaremos no começo de maio são concretas e uma resposta importante para que casos de racismo ou assédio de qualquer natureza não tenham espaço nesta Casa”, disse ele.
Há alguns dias, a parlamentar recebeu cópia do esboço da “cartilha comportamental” que está sendo redigida pela Assembleia. Gostou do primeiro rascunho, de maneira geral, mas começou a pedir ajustes.
Torceu o nariz ao ler nas primeiras páginas o verbo “esclarecer” no trecho sobre o propósito do manual. Parte da militância negra repudia o uso da palavra, por ver nela conotação racista, e propõe uma ressignificação com a expressão “escurecer”. Thainara sugeriu mudar para “trazer”.
Na versão mais recente, ela notou que foram suprimidas as menções a gênero, palavra que gera alvoroço entre bolsonaristas e outros políticos conservadores envolvidos no combate à chamada “ideologia de gênero”. A deputada diz esperar que o texto final tenha, de fato, teor inclusivo.
A assessoria de André afirma que outros deputados têm participado das discussões sobre a cartilha e a oferta de cursos e palestras sobre minorias. Não está nítido, no entanto, se o treinamento será obrigatório só para funcionários ou se os deputados também terão que necessariamente passar por ele.
Para Thainara, uma mudança já é perceptível: “Dei voz a pessoas que enfrentam racismo aqui há muito tempo. E todos entenderam que agora tem alguém que vai colocar a boca no mundo”.
Monica Seixas do Movimento Pretas (PSOL), que está envolvida na mobilização por respostas, diz que a petista “foi muito forte ao expor e denunciar o caso” e acerta ao priorizar um encaminhamento distante da lógica punitivista.
“Nada disso atenua a dor que ela passou, mas mostra uma outra perspectiva”, afirma a deputada.
Para Monica, que encabeça um mandato coletivo formado por sete mulheres negras, o lançamento da cartilha e do treinamento antirracista é um marco importante. “Espero que o presidente [André do Prado] vá até o fim na decisão que ele tomou, que toque na ferida e não seja só ação de marketing.”
JOELMIR TAVARES / Folhapress