Quem é Jericho Brown, que ganhou Pulitzer com poesia doce e brutal sobre ser negro

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Existe a felicidade que você tem/ e a felicidade que você merece”, afirma o segundo poema de “A Tradição”, do americano Jericho Brown. “Elas se sentam longe uma da outra/ Como você e sua mãe/ Se sentaram em pontas opostas do sofá/ Depois que uma ambulância veio para/ Buscar seu pai.”

Conforme os versos continuam, se entende que o responsável pela violência que esgarçou aquela vida doméstica foi o próprio eu lírico, que arremata -“Não importa quão doído a ferida/ Te deixou, você se senta e vê a si mesmo/ Como um ser humano finalmente/ Livre agora que ninguém precisa te amar”.

Já se capturam por aí alguns dos principais assuntos deste livro vencedor do Pulitzer de poesia, que agora chega ao Brasil pelo projeto Círculo de Poemas, com tradução de Stephanie Borges. As dores transmitidas dentro das famílias, a hostilidade contra si mesmo, o amor que fere como vidro perpassam quase toda a experiência despejada por Brown sobre as páginas.

É uma experiência negra num país racista, que não se exime de temas difíceis de encarar, como a tentação do suicídio pela sensação de não pertencimento (bebendo direto da fonte de James Baldwin), o medo de ser alvejado pela polícia a qualquer momento e o fardo de carregar na pele estereótipos sem absolutamente qualquer lastro.

“Nunca saberei quem inventou a mentira de que somos preguiçosos./ Mas adorarei acordar o maldito/ Ainda de madrugada, enfiá-lo num caminhão e levá-lo perante Deus/ Por todos os pontos de ônibus do país para ver todo aquele povo preto/ Esperando para ir trabalhar para ter o que quiser.”

A leitura de “A Tradição”, capaz de arrancar lágrimas de melancolia e revolta, não é leve. O que torna surpreendente quando seu autor aparece diante do vídeo do Zoom comendo o que parece uma salada, divertido e espalhafatoso.

O repórter pergunta ao escritor o quanto ele se separa do eu lírico tão grave de sua poesia. Brown diz que são totalmente iguais e totalmente distintos, porque, no limite, “você também é a pessoa que é na sua imaginação”.

“Não é como se eu estivesse mentindo”, afirma ele. “Não tenho filhos, mas quando um filho surge em um poema meu, é porque esse texto está tentando me ensinar algo.”

Brown oferece um exemplo baseado num caso real, sobre um episódio emblemático do movimento Black Lives Matter, que aparece de forma oblíqua num poema com o mesmo nome do livro.

“Quando eu penso no assassinato de Michael Brown por um policial, penso nele deitado na rua, seu corpo se decompondo, com fita de polícia em torno da área. E através da câmera ao vivo, você conseguia ver sua mãe a poucos passos dali, sem conseguir chegar até ele para cobrir seu corpo. Eu não preciso ser pai para saber que aquele sentimento deve ser insano.”

“Temos que nos perguntar por que temos tanta obsessão em saber quem escreveu um determinado livro”, continua o poeta. É compreensível, pondera ele, se perguntar por que alguém escreveria no lugar de outra pessoa marginalizada. Se a razão for objetificar aquela experiência, “não faça isso”, afirma. Mas caso não seja, não se preocupe, porque o próprio texto vai dar conta de tudo sem a necessidade de o autor se explicar.

Quem tiver curiosidade de saber quem é a pessoa por trás dos escritos de Brown, a propósito, vai ter uma boa oportunidade daqui a dois meses. O poeta premiado virá a São Paulo para a Feira do Livro organizada pela Associação Quatro Cinco Um, que terá sua segunda edição no Pacaembu de 8 a 11 de junho.

Mas a exploração que o escritor faz da própria autoria ainda vai alguns degraus além. Num poema doloroso, ele se dirige a si mesmo nominalmente -farto de escrever, ao mesmo tempo em que escreve.

“Estou cansado da sua tristeza,/ Jericho Brown, da sua negritude,/ Dos seus livros. De saco cheio de você/ Me levar pra cama/ Para eu esquecer o quanto estou/ Cheio. Estou cansado da sua beleza,/ Dos seus debates, sua preocupação, sua/ Determinação em manter a bunda/ Dura, da pouca grana que ganha.”

“Há uma sensação, quando você está escrevendo, de que você está fazendo a melhor coisa que qualquer um jamais poderia fazer”, afirma o autor. “Que está mudando as constelações, salvando o planeta. Aí depois você para, olha e vê que o mundo continua pegando fogo. Eu queria escrever sobre a sensação de desamparo que vem logo depois de se sentir todo-poderoso.”

O que não quer dizer que poesia seja destituída de poder. É só um processo mais discreto.

“Poemas não são música pop. Se você é Janet Jackson ou Beyoncé, seu trabalho é feito para grandes massas. Eu sou poeta! Quando você ler o meu livro, será Jericho Brown falando para você. O que acontecer com você será diferente do que a outra pessoa que ler. Então poemas podem não importar desse jeito grandioso, mas importam de um para um. Podem mudar um coração.”

Num texto específico, que pinta um traço de esperança nessa exaustão toda, Brown escreve estar “cansado de reivindicar a beleza onde há somente a verdade”. O que encanta é quanto espaço para ternura essa verdade também pode conter.

Em “Os Pêssegos”, por exemplo, ele faz uma crônica curta sobre comprar frutas, depois do expediente, para duas garotinhas que estão em casa. “Trabalhei duro e quero/ levar para elas algo doce”, escreve Brown sobre, quem sabe, suas filhas imaginárias. “Para que saibam que sinto mais falta delas/ Do que de outras pessoas.”

A TRADIÇÃO

Quando Já distribuído a assinantes do Círculo de Poemas; chega a livrarias a partir de maio

Preço R$ 54,90 (88 págs.); R$ 34,90 (ebook)

Autor Jericho Brown

Editora Fósforo e Luna Parque

Tradução Stephanie Borges

WALTER PORTO / Folhapress

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