Quilombos são esnobados e reduzidos à escravidão na história de filmes e novelas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Faz sete décadas que a primeira adaptação audiovisual de “Sinhá Moça” chegou ao cinema. O filme, inspirado no livro homônimo de Maria Dezonne Pacheco Fernandes, abocanhou troféus nos festivais de Veneza, Berlim e Havana e ficou conhecido como um dos primeiros longas nacionais a olhar criticamente para a escravidão.

A obra, porém, é rodeada de controvérsias, chegando até mesmo a ser rotulada por muitos como racista, já que retrata escravizados negros como ingênuos e senhores brancos como heróis.

“Sinhá Moça” conta o drama de uma sinhazinha que, a contragosto do pai, defende a abolição da escravatura e ajuda negros a fugirem de sua fazenda. No filme, a organização dos povos quilombolas –ponto-chave na história da luta abolicionista do país– quase não tem espaço.

Agora, sete décadas depois da estreia de “Sinhá Moça”, a representação quilombola no cinema e na TV brasileira é maior e mais diversa, mas as telas do mainstream pouco inovam ao se debruçar sobre o assunto.

Da mesma forma que em “Sinhá Moça”, que, aliás, inspirou duas novelas homônimas –uma de 1986, protagonizada por Lucélia Santos, e a outra de 2006, com Débora Falabella–, “Xica da Silva”, de 1997, “A Escrava Isaura”, de 1976 com remake em 2004, “Escrava Mãe”, de 2016, e “Nos Tempos do Imperador”, de 2021, têm tramas que se passam no período escravocrata e mostram quilombos –nenhum em posição de destaque, contudo.

“Quando mostram quilombo somente como algo do passado, invisibilizam a proposta de futuro que ele sempre foi”, afirma a antropóloga e cineasta mineira Maya Quilolo, da comunidade Arraial dos Criolos, em Araçuaí, em Minas Gerais. “O problema não é o tempo, mas sim a maneira como o passado é contado.”

Segundo Quilolo, que está prestes a lançar o curta de animação infantil “Bucala e a Boneca Abayomi”, muitos dos filmes e novelas nacionais reforçam estereótipos racistas sobre os povos quilombolas, os reduzem à condição de rebeldia e deturpam suas histórias.

Nem mesmo “Quilombo”, o longa brasileiro mais prestigiado e famoso sobre o tema, teria escapado do clichê, segundo a antropóloga.

Dirigido por Cacá Diegues e indicado ao principal prêmio do Festival de Cannes em 1984, o filme é uma ficção que se passa no Quilombo dos Palmares –localizado onde hoje fica Alagoas–, durante o século 17, e narra lutas do líder Ganga Zumba contra o escravismo colonial.

“Palmares era enorme. Tinha várias pessoas negras, indígenas e brancas vivendo ali. Era praticamente um estado”, afirma Quilolo, ao criticar a forma como essa comunidade é retratada no filme. “Não era um lugar só de escravos fugitivos.”

Diegues conta que ouviu mais de uma vez reclamações sobre o longa, mas sempre deu de ombros. “Não dou muita bola [para quem diz isso]. Quando o filme foi lançado, a maioria dos brasileiros nem sabia o que é quilombo”, diz o diretor. “Ele ajudou as pessoas a conhecerem essa história.”

Ainda segundo o cineasta, são muitos os militantes negros que elogiam “Quilombo”. “O rapper MV Bill, por exemplo, disse que o filme mudou a vida dele. Fico muito feliz.”

Anos antes de polemizar com “Quilombo”, Diegues já havia feito o mesmo com “Ganga Zumba”. Percursora em representar o negro como uma figura heroica da luta abolicionista, a obra também divide opiniões, havendo quem celebre seu ineditismo e quem reclame de seu roteiro.

Marcelo da Silva Murilo, professor de história da Universidade Federal do Acre e autor do artigo “Os Negros na História do Brasil Contada pelo Cinema Nacional”, afirma que o contexto histórico influencia desde a produção de uma obra até a forma como ela é recebida.

É diferente assistir a “Quilombo” em 1984 e em 2023. “O público de hoje é mais exigente”, diz ele. “Há mais acesso à informação. Cabe, então, ao cineasta usar isso a seu favor.”

Com revisões historiográficas sobre a cultura afro-brasileira e, consequentemente, estudos cada vez mais aprofundados sobre o tema, é natural que narrativas artísticas também ganhem outros contornos, afirma Murilo.

Enquanto o curta “Aruanda”, de 1959, menciona a existência quilombola de maneira superficial e em tom acrítico, por exemplo, “Quilombo” é voltado à resistência negra nessas comunidades. Já “Nove Águas”, de 2019, joga luz sobre a especulação imobiliária em terras não tituladas.

Exibida em 2017, “O Outro Lado do Paraíso” se tornou a primeira novela a ter uma personagem quilombola que vivesse no Brasil contemporâneo, a Mãe Quilombo, papel de Zezé Motta. A novidade, no entanto, era limitada, e o papel teve poucas aparições.

“O caminho percorrido para que isso acontecesse, em horário nobre, numa emissora de alcance tão alto, foi longo e mérito de todos que lutam pela população negra. Mas o que desejo mesmo é ver uma novela só sobre quilombolas”, afirma Motta, que também já encarnou Dandara, de Palmares, em “Quilombo”.

Segundo a atriz, a pouca atenção dada ao assunto está atrelada à pequena “presença preta nos cargos de liderança” do setor.

Fora do mainstream, cineastas quilombolas têm se organizado para realizar mostras de filmes, aumentando a divulgação de seus trabalhos. Maya Quilolo, por exemplo, já expôs em eventos do tipo.

Para assistir a narrativas quilombolas que estejam fora da caixinha estereotipada, a cineasta diz que, primeiramente, é necessário se desvincular da ideia de singularidade, frequentemente associada a essa parcela da população, que é composta por vários povos, culturas e reivindicações.

Outro estereótipo comum em produções audiovisuais é a figura do quilombola raivoso. “Nos Tempos do Imperador”, por exemplo, gerou polêmica com uma cena que iguala o racismo à insegurança negra e induz à ideia de que, nos quilombos, há pessoas cheias de ódio. À época, a autora da obra pediu desculpas.

Procuradas para comentar a representação quilombola em suas novelas, as emissoras Globo e Record não se manifestaram.

Segundo Joel Zito Araújo, cineasta e autor do livro e filme “A Negação do Brasil”, o racismo contra os quilombolas é o principal motivo de pouco se investir em filmes, novelas e séries sobre essas comunidades.

Araújo diz ainda que sente falta de ousadia artística. É preciso, afirma, não só mostrar quilombos na era atual, como também reinterpretar o passado.

“E se a gente falasse de Palmares a partir da ideia de que Zumbi foi um vencedor, não um derrotado?”, questiona. “E se contássemos uma nova história do Brasil?”

MARINA LOURENÇO / Folhapress

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