SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No dia que marcou a assinatura da abolição pela princesa Isabel, Gilberto Gil defendeu, diante de uma plateia de mais de mil pessoas no Rio de Janeiro, que a abolição deve ser um movimento permanente até que os negros sejam “considerados construtores da história do Brasil para todos os brasileiros”.
Em mesa com o ator Haroldo Costa abrindo a Festa Literária das Periferias, neste sábado, ele citou a redistribuição de terras pela reforma agrária, objeto de choques recentes entre o governo Lula e o Movimento Sem Terra, como um tipo de gesto nessa direção.
“Enquanto a violência, a agressão, o desprezo em relação ao negro permanecer em grau insuportável, o conceito de que não alcançamos a abolição permanecerá.”
As coisas melhoraram, contudo. Um entre dois negros ocupando cadeiras hoje na Academia Brasileira de Letras, Gil afirmou que hoje o escritor Lima Barreto, por exemplo, seria mais bem acolhido por seus pares e poderia fazer parte da casa.
Costa, que fez parte do Teatro Experimental do Negro e foi o primeiro protagonista negro nos palcos do Theatro Municipal do Rio, também reconhece que a representação da raça no audiovisual cresceu -antes tarde do que nunca.
“A televisão brasileira acordou tarde para que a sociedade fosse representada também por sua porção negra. Vamos criando a possibilidade não só profissional para os atores, mas de termos um conhecimento visto por esse olhar. Estamos tomando cada vez mais o leme da nossa história.”
Nas palavras da mediadora, a escritora Eliana Alves Cruz, é uma história “contada a partir das costas e não do chicote”. Era comum que a cultura negra, quando representada no século 20, o fosse por vozes e rostos brancos.
Vinicius de Moraes foi um exemplo que levantou debate na mesa, quando Alves Cruz lembrou que ele se reivindicava “o branco mais negro do Brasil”.
Gil defendeu o poeta. “Vinicius tinha todo o direito de se considerar negro, era a matéria negra poética e imagética que ele trabalhava. É uma reivindicação legítima, mais a favor do negro do que um autoelogio.”
Segundo o compositor, ao fazer música com essas raízes, Vinicius abriu espaço para que os próprios negros se manifestassem com seus sambas em discos e espetáculos. “A herança que ele deixou para a música brasileira é a dimensão negra que está nitidamente nele, que foi um dos maiores poetas do Brasil e talvez o maior da musica popular.”
Costa lembrou ainda que Vinicius, ao lançar a peça “Orfeu da Conceição”, explicitou no prefácio que a montagem deveria ser feita só por atores negros.
A mesa terminou com um coro cerimonioso da música “Babá Alapalá”, em que Gil reverencia a ancestralidade negra, e um mais afetivo -o “Parabéns a Você” dirigido a Costa, que completa 93 anos neste sábado.
Eles se apresentaram diante de artistas como Regina Casé, escritores como Conceição Evaristo e Geovani Martins, intelectuais como Jurema Werneck e Heloisa Buarque de Hollanda, recém-eleita para a ABL, em uma plateia abarrotada numa arena na ladeira do Livramento, no morro da Providência.
Era a abertura da programação deste ano da Flup, uma festa celebratória que orbita em torno do livro, nas palavras de Dani Salles, organizadora do evento ao lado de Julio Ludemir.
Se houve durante o dia mesas sobre literatura infantil e o lançamento do volume “Quilombo do Lima”, em que talentos egressos das oficinas do festival escreveram crônicas em homenagem a Lima Barreto, muitas outras artes tomaram a palavra.
Pela manhã os Filhos de Gandhy fizeram um ritual de lavagem da ladeira do Livramento, seguidos pelo bloco Prata Preta, conhecido do Carnaval carioca.
Tanto quanto uma festa literária, como manda o nome, a Flup sempre foi uma homenagem à cultura negra, que se manifesta na música, nas performances -por isso Gilberto Gil se vê tão confortável em seu centro- e na religiosidade afrobrasileira.
Boa parte da tarde foi tomada por uma homenagem a Mãe Beata de Iemanjá, morta em 2017, com depoimentos emocionados de mulheres negras que a conheceram, celebraram e prometeram continuar seu legado, em mesas envolvidas pelo som de atabaques.
Mãe Beata era uma referência na transmissão oral das tradições de raiz africana, como são tantas mães de santo pelo Brasil, mas também quis registrar seu conhecimento em livro, num movimento cada vez mais disseminado no país. Era seu gesto em direção à imortalidade, diz Salles.
O marido dela, Écio Salles, morto em 2019 aos 50 anos, fundou a Flup com Ludemir em 2012. Era um projeto inicialmente ligado ao das Unidades de Polícia Pacificadora nas favelas cariocas -por isso o festival, no início, se chamava Flupp.
Se é pouco questionado que aquela intervenção policial não deu certo, o mesmo não se pode dizer do festival literário que antes era um braço desse projeto de segurança pública -e hoje anda firme com as próprias pernas.
Foram passos significativos, por exemplo, quando a edição de 2019 ocupou o Museu de Arte do Rio, abrindo suas portas para a periferia, e quando a virtualidade pandêmica possibilitou participações internacionais como a de Grada Kilomba.
Apesar de contar com robustos apoios privados, agora o evento acontece em uma situação mais favorável com a recriação do Ministério da Cultura. Em sua fala no palco, Salles foi aplaudida ao dizer que “a cultura deixou de ser criminalizada e voltou a ser investimento”, diante do secretário da área de livros e leitura do governo Lula, Fabiano Piúba, que estava na plateia.
Tudo isso aconteceu a poucos metros da casa onde nasceu Machado de Assis, dentro de um prédio estampado com um vasto mural com o rosto do autor. Se o escritor se preocupava tanto com a edificação das novas bases da literatura brasileira a ponto de criar a ABL, a Flup tem caminhado no mesmo compasso.
WALTER PORTO / Folhapress