SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Natalie Mering, a Weyes Blood, não está sozinha –ao menos é o que ela prega na faixa de abertura de “And in the Darkness, Hearts Aglow”, seu quinto disco, lançado em 2022. A artista se define como empática, razão pela qual brada letras sobre não termos tempo para o medo ou sobre estarmos -na primeira pessoa do plural- vivendo mudanças arrebatadoras.
A capa da obra, porém, vem no singular. E é bastante literal. Mering parece uma pintura, vestida com babados volumosos, os longos cabelos escuros e lisos penteados para o mesmo lado em que ela olha. Ela está iluminada apenas pela incandescência do seu próprio coração, neon brilhante sob a pele de seu peito, que ela segura com a mão em repouso.
“É um álbum muito íntimo”, afirma em entrevista por Zoom. “As condições que o mundo encarava forçaram todos a irem para dentro e olharem para as relações com os outros. O isolamento social e a pandemia tornaram a intimidade uma questão crucial.”
Sobre harpas, quartetos de cordas, pianos etéreos e forte inspiração setentista, Mering canta o tempo que não temos para temer, incêndios na Califórnia e pede a Deus para que a transforme em uma flor, para que não doa tanto quando ela for esmagada.
O álbum -literal em sua própria capa– conquistou os corações angustiados durante a prolongada reclusão social pandêmica. Mering chegou a ser descrita como a voz de uma geração -aos 34 anos, é voz, em pânico consternado, dos millennials que lidam com a herança maldita de um planeta e uma sociedade em frangalhos.
“Sou empática, então sinto muito do que os outros sentem e, assim, crio uma noção do que está acontecendo no mundo. Hoje as pessoas são tão focadas em pensar positivo ou criar situações aspiracionais. Todos são confrontados com tantas respostas, mas ninguém está falando em definir os parâmetros da distopia. Eu acredito que esse seja o começo do processo de cura.”
Ela agora traz sua delicadeza sonora e mensagem forte ao C6 Fest, que começa na quinta-feira, dia 18, no Rio de Janeiro, e chega a São Paulo na sexta-feira, dia 19. Ela compõe um line-up de peso no domingo, dia 21, na Tenda Heineken entre os novinhos aclamados do Black Country, New Road e o psicodélico The War on Drugs. Na sexta, o palco é ocupado por Dry Cleaning e Arlo Parks e, no sábado, por Jon Batiste e Arlo Parks.
Com a morte de Rita Lee, os brasileiros do line-up ganham nova centralidade –Caetano Veloso e Tim Bernardes fariam uma tarde em homenagem a Gal Costa, mas é difícil não esperar alguma menção à “cacica” do rock.
Em sua primeira edição, o festival de pegada intimista –a plateia externa comporta 10 mil pessoas–mistura o conceito de eventos extintos como o Free Jazz e o Tim Festival, com nomes do jazz atual e da mais fina flor do rock alternativo.
Será um desafio levar a sonoridade e a potência de “And in the Darkness” aos fãs brasileiros, mas Mering alcançou um novo patamar de fama com o álbum depois do já celebrado “Titanic Rising”, de 2019, e ganhou mais experiência nos palcos.
A obra, depois do álbum de 2019, compõe uma trilogia, diz a artista. “Esse álbum é um purgatório provisório para um trabalho mais esperançoso, extrovertido e futurista que encerraria essa tríade.”
Gravado sob restrições sanitárias, antes das vacinas de Covid-19 e ainda com máscaras, Mering temia que a obra, feita no e para o fim do mundo, se tornasse literal demais nos palcos, diz.
Mering nasceu em uma família de músicos na Califórnia, mas cresceu na Pensilvânia, perto da outra costa dos Estados Unidos e de uma cultura totalmente diferente.
Antes do sucesso arrebatador de “And in the Darkness”, foram quatro álbuns de estúdio sob artista começou a carreira longe da pecha do rock alternativo que a persegue –e que ela rejeita. No início, tudo era noise e drone, sonoridades mais experimentais e menos palatáveis do que o som que Mering apresenta como Weyes Blood.
Ela ainda se considera uma vanguardista e não é a única. Neste ano, participou da faixa “STORY OF BLOOD” em “MERCY”, novo álbum de John Cale, ex-Velvet Underground tido como um guardião e vovô chancelador do rock avant-garde. A faixa é, de fato, muito mais novidadeira do que tudo que Mering já lançou sozinha –e em nada se parece com o velho Velvet.
“Sou uma grande fã dele. Foi surpreendente. Ele é um exemplo de alguém que mistura drone, letra, rock e tecnologia.”
Na faixa, Mering vocaliza timbres fantasmagóricos, sonoridade que marca seu estilo. Sua voz soa mais grave do que colegas da sua geração do rock, ponto marcante em sua música além da poética apocalíptica. Por isso, ela costuma ser descrita como sinistra.
“Acho que isso vem de um certo respeito pelo macabro, pelos mistérios da vida e pelo subconsciente”, diz a artista. “Muitas referências da cultura pop a essa vibe têm essa qualidade sinistra porque é a única forma que temos como sociedade de nos fazer perguntas. É um tabu falar dos mistérios da vida e da morte.”
Para ela, o público associa suas experimentações com esse ambiente de mistério. “É como quando os filmes de terror eram o único canal para música eletrônica experimental. Existia no underground, mas só virava mainstream quando se tornava trilha sonora de algo aterrorizante.”
Mering está longe de soar assustadora, mas não se esquiva de abraçar o desconforto em sua obra -e não só na sonoridade. Em um de seus clipes, um desenho animado de um smartphone mata pessoas a sangue frio em um cruzeiro enquanto ela canta e dança com roupinhas náuticas e olhar perdido.
“Ainda estou tentando descobrir como navegar o caos. Existem tantas vias que dão em becos sem saída. Minha esperança é criar um cenário onde existe esperança, mas onde não exista uma negação do que está acontecendo.” Se Mering não parece perto de ter uma resposta, Weyes Blood, entre navios afundando, celulares assassinos e mundos acabando, parece ser uma boa voz para canalizar as perguntas.
BÁRBARA BLUM / Folhapress