Seattle era longe demais para ser suspeita de qualquer insurgência. Erguida sobre sete colinas e banhada de muitas águas na beira oeste dos Estados Unidos, tinha o azul do céu escondido por mais de 220 dias ao ano, quando o frio soprado pelo Alasca tornava tudo cinza e fazia os garotos vestirem jaquetas sobre as camisas de flanela. A 4,6 mil quilômetros de Nova York, quase 2 mil de Los Angeles, a Cidade das Chuvas orgulhava os mais velhos com a sede da Boeing garantindo trabalho desde 1916 e a primeira Starbucks valorizando o café da região desde 71. Aos filhos entediados, restava armar a bomba.
E ela explodiu em 1991. Há 30 anos, dois álbuns feitos pelo mesmo material humano, jovens revoltados por fora, niilistas por dentro e invisíveis em um país que sequer parecia ser deles, provocariam um tremor no império que o showbiz havia construído para si.
O sistema de controle sobre o que seria ou não um artista, filtrado e regido pelas gravadoras transcontinentais, estava mais organizado, milionário e excludente do que nunca quando os discos Nevermind, do Nirvana, e Ten, do Pearl Jam, soaram o alarme.
A ruptura já vinha sendo tomada por grupos locais como Melvins, Mudhoney, Soundgarden, Green River, Skin Yard e Alice in Chains, além do próprio Nirvana, que lançou seu primeiro álbum sem maior furor pelo selo Sub Pop, Bleach, em 1989. Mas só em 1991 o barulho começou a ser ouvido.
Os 30 anos de distância deixam tudo um pouco mais interessante. Afinal, sabe-se bem, não se tratava apenas de música. A cena de Seattle, como uma reedição despolitizada do punk de meados dos anos de 1970, vinha para implodir tudo o que se entendia como rock mainstream, algo que poderia incluir bandas que eles mesmos ouviam.
Kurt Cobain e Eddie Vedder, a seus estilos, detestavam o teatro em que os eleitos à imortalidade eram submetidos pela indústria e usariam suas aparições para torpedeá-los: a figura do guitar hero revitalizada por Slash, a imagem do vocalista sexy reservada a Jon Bon Jovi, os espetáculos grandiosos do Iron Maiden, os solos de bateria do Rush, as poses do Poison, as línguas do Kiss, as entrevistas, os autógrafos, a fama e a idolatria. Tudo uma enorme e absurda m… em que o rock foi terminar.
Pop Metal
Kurt e Eddie podem ser extremos de um mesmo grunge, o reativo indomável e o resiliente reservado, mas Nevermind e Ten, ainda mais quando se ouvem sons realmente primitivos de Seattle como Touch me I’m Sick, do inegociável outsider Mudhoney, ou Swallow My Pride, do Green River, Smells Like Teen Spirit e Black soam (que maldição) bem pop. Assim como eles abrem as portas do mundo ao som do grunge, podem também guardar algo de despedida das ruas sujas e anti indústria pela qual também gritaram.
Uma dicotomia que responde pelo nome de produção. Buth Vigh, escolhido para fazer a sonoridade de Nevermind engordar à base de distorções de guitarra e cruezas de vocal, ia bem até que a supervisão da produção passou às mãos de Andy Wallace, um homem mais velho e experiente nas sujeiras do Bad Religion e nas limpezas de Paul McCartney, mas sobretudo sábio em equilibrar as vontades de salvar o mundo com a necessidade de pagar as contas.
“O som de Seattle resgatou a gravação da sujeira, mas Nevermind chega mais polido e arquitetado, quase que como um grunge de butique”, diz o jornalista e pesquisador Bento Araújo, autor da série de livros Lindo Sonho Delirante.
Algo que se encontra com a fala do próprio Cobain, anos depois do lançamento do LP: “Olhando para trás, eu fico constrangido. Nevermind está mais perto de um disco de Motley Crue do que do punk rock.”
Se era o preço a se pagar por tudo o que viria em troca, justo. A habilidade de Vigh e Wallace ao reprogramarem as linhas nervosas do Nirvana conseguiu manter a alma de Seattle esclarecendo um discurso musical baseado na alternância rápida e bipolar entre melodia assobiável e barulho ensurdecedor, organizando a guitarra de Kurt, dando clareza à bateria de Dave Grohl e, quando não dobrando o baixo de Krist Novoselic, o colocando em destaque em compassos estratégicos de Come As You Are, Lounge Act e Lithium. Em condições para se chegar às rádios e à MTV – mas ok, ninguém precisava dizer isso perto de Kurt – o disco estava pronto para ir às prensas.
As 80 mil cópias iniciais enviadas às lojas em 24 de setembro de 1991 sumiram em dias. Depois de períodos vendendo 300 mil exemplares por semana, e mesmo antes de Smells Like Teen Spirit abrir lugar para o segundo single, Come As You Are, o álbum tomou o posto de Michael Jackson despachando Dangerous do topo da parada da Revista Billboard no início de 1992.
As listas de melhores da história o colocaram em posições de destaque e, em março de 1999, os números chegariam a 10 milhões de cópias vendidas.
Ídolo mergulhado em heroína, cercado por fãs e jornalistas, Kurt Cobain empunhou o cetro do mesmo sistema que só quis implodir. Ao contrário de Eddie Vedder, que criou um bunker para si e um jeito de romper e usar a mídia ao mesmo tempo para manter o Pearl Jam vivo, ele não resistiu.
No dia 8 de abril de 1994, seu corpo foi encontrado sem vida em Seattle com uma espingarda e uma carta ao lado que dizia: “Há muitos anos não venho sentindo excitação ao ouvir ou fazer música, bem como ler e escrever. Minha culpa por isso é indescritível em palavras… O fato é que não consigo enganar vocês, nenhum de vocês. Simplesmente não é justo para vocês e para mim. O pior crime que posso imaginar seria enganar as pessoas sendo falso e fingindo que me divirto”.
Para o jornalista André Forastieri, editor-chefe da Revista Bizz à época do surgimento do grupo, foi neste dia que o grunge deixou seu maior manifesto. “Se Kurt Cobain estivesse vivo e gordo, como nós, não faria sentido.”
E agora? Grupos como Nirvana e Pearl Jam soariam como tiozões clássicos do rock para as novas gerações? “Toda a música passou a ser simultânea na era do streaming. Dua Lipa, Bessie Smith e Kurt Cobain são presentes permanentes para um jovem de 15 anos. Quem vai ficar para a história, para eles, não é o mais importante.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.