SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O uso do inquérito das milícias digitais, sob relatoria do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes, para investigar o suposto esquema de fraude nos registros de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) pode, se provada a falta de conexão, colocar em xeque toda a apuração.
A análise é feita pelo presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Renato Vieira. Ele afirma que usar o inquérito como um guarda-chuva faz com que a investigação perca o foco e gere desconfiança.
No caso da devassa promovida a partir da quebra de sigilo de Mauro Cid, Vieira vê risco de anulação das provas, se provada a falta de proporcionalidade no acesso.
Para o criminalista, é preciso alterar a Constituição para que o Supremo deixe de atuar em temas de natureza penal.
Vieira também critica projetos de lei que podem gerar aumento do encarceramento no país e o racismo no sistema de Justiça. Para o advogado, ao escolher para o Supremo mais um homem branco, o presidente Lula (PT) se mostra muito menos comprometido com o tema do que seria esperado.
PERGUNTA – Bolsonaro é investigado pela suspeita de alterar registros de vacinação no inquérito das milícias digitais. Qual o risco de não desmembrar essa apuração?
RENATO VIEIRA – Me parece que a matéria em exame ali não seja de milícias digitais, então eu vejo como um aparente problema a manutenção desse caso perante o Supremo.
Se houver uma declaração mais cedo ou mais tarde de que a autoridade não poderia proceder com aquilo, nós temos um vício de incompetência absoluta que anula toda a persecução. Ninguém pode ser processado nem investigado senão por uma autoridade específica naturalmente investida daquela função.
Quando se utiliza um procedimento, seja das fake news ou das milícias digitais, como um possível guarda-chuva, em que cabem toda e qualquer investigação, um exemplo ruim é que as autoridades de mais baixa hierarquia entendam isso como certo. São exemplos de investigações que não se sabe como e quando serão concluídas. Uma investigação que se torna tentacular começa a abranger um número tal de pessoas que ela acaba não tendo mais um foco específico e, portanto, a confiança no próprio sistema acaba sendo diminuída.
P. – A Folha de S.Paulo revelou uma devassa promovida a partir da quebra de sigilo contra o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro Mauro Cid. Qual é o risco para a investigação se for provado falta de proporcionalidade no acesso aos dados?
RV – Aí temos um debate para anulação da prova e, consequentemente, das provas derivadas dela. É a chamada teoria dos frutos da árvore envenenada. Uma vez que se discute a anulação de uma determinada prova, aquilo que decorre diretamente vai ser anulado também.
P. – À PF Bolsonaro disse não ter conhecimento das supostas fraudes em seu registro de vacinação. Como avalia os indícios contra o ex-presidente?
RV – Há um trabalho jurídico pela frente para os advogados defenderem o ex-presidente, mas me parece muito pouco crível que ele nada sabia, porque não economizou nas menções ao Mauro Cid como um agente da mais irrestrita confiança.
No entendimento de um instituto que preza pelos direitos humanos, muito mais grave é a vergonhosa situação de que, para se defender de um problema penal, ele verbaliza mais uma vez que não se vacinou, que ele é contra a vacina.
P. – Quais são as chances de Bolsonaro ser preso?
RV – Nós temos que ter um compromisso com os direitos humanos e a construção de um Brasil com uma Justiça Penal menos seletiva, cruenta e racista.
As chances de o ex-presidente ou de qualquer cidadão ser preso tem que ser vistas na mesma medida: a presença de situações que indicam cautelaridade, ou seja, o perigo ao bom andamento de uma causa penal. Se ele estiver sumindo com documentos, coagindo testemunhas e dando provas concretas de que vai desaparecer e se furtar à aplicação da lei. Aí sim temos uma situação de medidas cautelares do processo penal e a última delas -e isso tem que valer para todos, não é para o Zezinho e não é para o Jair- é a prisão preventiva.
P. – Criminalistas têm divergido sobre se o ministro Moraes adota métodos comuns aos usados pela Lava Jato. Qual é a sua avaliação?
RV – Não devemos fazer uma comparação de sinônimos entre a Lava Jato e o que está acontecendo agora. O que aconteceu na Lava Jato foi um desassombrado descontrole, com uma campanha midiática muito violenta e específica que gerou inclusive propostas de lei inconstitucionais. Nós tínhamos conduções coercitivas, prisões temporárias, estímulos imorais a delações premiadas e concurso entre acusação e Judiciário.
O que nós estamos vendo hoje não é comparável porque é uma tentativa de se brecar essa cruzada anticivilizatória do ex-presidente. Vemos uma posição capitaneada por um ministro do Supremo, mas que vem para debelar um outro mal que surgiu a partir de 2018, e que vem secundado de várias frentes de investigações de crimes diversos e muito graves. É uma tentativa de colocarmos a sociedade brasileira em outro patamar, mas ainda assim o tema do controle merece ser levado em conta.
P. – A conduta do Moraes se assemelha a de Sergio Moro?
RV – Eu não acho. Nós vivemos um problema de manutenção do sistema da democracia que antes não tínhamos. Podemos discutir equívocos, excessos, descontroles, mas o contexto é radicalmente diferente.
Espero que nós concluamos essas investigações para que o Supremo volte a trabalhar com o controle de guarda da Constituição Federal. A gente tem uma oportunidade a ser aproveitada que é discutir um redimensionamento das atribuições do STF. O Supremo Tribunal Federal não deve ser uma corte originária de ações penais, isso atravanca as discussões constitucionais que o Supremo deve ter.
Não é papel do Supremo fiscalizar inquéritos policiais e não é papel do STF julgar ações penais. O papel, como corte Suprema, deve ser o papel mais restrito de corte constitucional ou corte recursal que seja, mas isso depende de um rearranjo constitucional.
P. – É viável fazer essa discussão com um Congresso conservador como hoje?
RV – Esse risco que a gente sempre vai ter. O que a gente tem é um documento, que é a Constituição. A questão surgiu com julgamento do mensalão e era um outro governo, outro Congresso. O problema da conformação do Supremo como corte constitucional autêntica está durando.
P. – O STF incomodou o Congresso ao pautar o julgamento de ações sobre regulação de big techs, adiado para junho. O que preocupa nesse debate?
RV – Nós não estaríamos nesse tensionamento se a atividade econômica das big techs já fosse mais regulamentada.
Concordo com o ponto de vista de partida do ministro Alexandre de Moraes de que não há um controle sobre o que acontece ali. Tanto isso é verdade que empresas com esse poderio econômico imenso estão fazendo serviço de desinformação da sociedade, pressionando de um jeito constrangedor o debate público.
Eu vejo como importante o momento para nós controlarmos sim essas atividades. Isso não significa censura, viés ideológico. Isso significa uma adequação ao ditame constitucional. Dentro das plataformas se divulga o conteúdo que se quer, porque há um interesse de ganho econômico e isso por si só justifica o controle dentro de uma democracia.
P. – O IBCCrim criticou o projeto de lei do senador Sergio Moro para ampliar a pena de quem planeja ataques contra autoridades. Por quê? RV – Primeiro, já existe lei que protege autoridades, testemunhas, vítimas.
Segundo porque se estabelece ali penas altíssimas que vão até 12 anos no máximo para uma situação de instigação mesmo que o ato não aconteça.
Terceiro, porque tecnicamente se pune com a mesma pena o crime consumado e o crime tentado. Há inconsistências do plano de teoria geral do direito penal que causam certa surpresa vindo de um doutor por universidade pública brasileira.
P. – O instituto também manifestou preocupação sobre o projeto que altera a lei antiterrorismo, aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça no Senado
RV – O IBCCrim está junto com outras entidades nesse debate, como IDDD, Conectas e Artigo 19. Já temos uma lei antiterrorismo desde 2016. Não é por alta deficiência dessa lei que nós não vemos punições. É porque não existe terrorismo no Brasil. Vejo como um risco à liberdade de manifestação essa rediscussão. Particularmente, estamos falando do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Temos que ter muito cuidado para que num Estado democrático de Direito as pessoas tenham o direito de se manifestar pacificamente ainda que isso cause incômodos.
Nós sempre defendemos que a Justiça penal seja vista como um mínimo. Isso propicia uma expansão desenfreada dos braços da Justiça penal. O sistema penitenciário brasileiro é um inferno e ele vai explodir. Essa é a cruzada que a gente tem que resolver. O IBCCrim está atento a como o sistema da Justiça é racista. Racista aqui no Tribunal de Justiça, porque não reflete a sociedade brasileira.
P. – Quando o presidente Lula sinaliza indicar mais um homem branco ao STF, ele dá as costas para essa discussão?
RV – Ele se mostra muito menos comprometido do que seria o esperado. Muito menos.
Renato Vieira, 47
Presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e sócio-fundador do escritório Kehdi Vieira. Doutor e mestre em direito processual penal pela USP, é formado em direito e mestre em direito constitucional pela PUC-SP.
GÉSSICA BRANDINO / Folhapress