CANNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Não é difícil encontrar, numa caminhada matinal pela Croisette, figuras que parecem ter saltado dos editoriais de moda, com looks extravagantes ou discretos –mas de grife, sem dúvida–, enquanto o tapete vermelho do Festival de Cannes começa a reunir fãs desesperados e suas plaquinhas.
Mas “Youth (Spring)”, ou juventude (primavera), documentário do chinês Wang Bing em competição no evento, não tem o menor interesse pelos moços e moças em flor nem na moda que consomem. Ainda assim, roupas preenchem as três horas e meia de projeção sob forma de pilhas de tecidos, máquinas de costura, fileiras de carretéis manuseados por jovens de 20 e poucos anos que produzem milhares de peças na região de Zhili, a 150 quilômetros de Xangai.
Rodado entre 2014 e 2019, o longa acompanha o dia a dia do trabalho em diversas oficinas da região, a maioria delas na chamada “avenida da Felicidade”, e nos dormitórios divididos entre os trabalhadores –meninos e meninas que vêm de outras cidades para uma temporada de trabalho que pode se estender por meses.
E ao contrário do que se pode imaginar a priori em uma obra que mergulha na intimidade da mão de obra barata que alimenta mercados pelo mundo (não só os da moda), a alegria aparece frequentemente nos lampejos de vida que a câmera experiente de Bing sabe capturar.
Entre a costura de uma camisa e de um vestido, um rapaz e uma garota paqueram livremente –ele está apaixonado, mas só teve namoros online; ela não quer ter nada com um menino mais pobre e não hesita em dar uns tabefes nele durante suas investidas.
Do pouco tempo que sobra após o turno da noite, um grupo se reúne numa barraquinha para comer macarrão e depois brinca pelos quartos do dormitório pago pelo patrão.
O cineasta de 55 anos, maior nome do documentário chinês moderno, partilha de tamanha confiança que se torna invisível à maneira de Frederick Wiseman e consegue capturar cenas como uma discussão entre um patrão e a mãe de uma jovem que precisa abortar, mas deve algumas centenas de calças.
Há ainda violentas reuniões por melhor remuneração por peça concluída, direito a folgas e intervalos e despesas de transporte que, mesmo maçantes e repetitivas, remetem à realidade de sucateamento e à uberização de serviço em geral –sem falar na ameaça da automatização e das inteligências artificiais.
Não é a primeira vez que Bing mergulha num universo privado da sociedade chinesa –sua obra maior, “A Oeste dos Trilhos”, apresentava 9 horas sobre a decadência de um distrito industrial, e “Até que a Loucura nos Separe” acompanha o cotidiano de um hospício.
Célebre também por entrevistas com figuras anônimas que foram perseguidos pela revolução cultural maoísta (caso de “Fengming: Memórias de uma Chinesa” e “Almas Mortas”), o diretor olha de maneira original para o futuro da potência mundial a partir das ruínas de sua formação, retomando um universo que abordou em “Bitter Money”, de 2016. Prolífico, Bing já edita uma sequência para seu novo longa.
Em vez de encontrar quem conte suas histórias, ele adentra o mundo do trabalho para registrar os destinos que se costuram por lá. É uma possibilidade (e uma audácia) que parecem em falta no cinema documental, onde a temática operária tem sido glamourizada.
Pelo histórico da Palma de Ouro, “Youth (Spring)” tem poucas chances de vencer –só dois documentários levaram o prêmio principal na história do festival, o último deles, “Fahrenheit 9/11”, de Michael Moore, em 2004.
Não que a questão social do documentário seja nova, e claramente não é um filme de denúncia para espantar audiências ocidentais. Mas avisa, indiretamente, que os sonhos de jovens em todas as partes do mundo, se não passam pelas mesmas condições sociais, são bastante similares.
O jornalista viajou a convite da Secretaria da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.
HENRIQUE ARTUNI / Folhapress