Yanomamis são explorados na piaçaba em longas jornadas e dívidas por farinha e gasolina

COMUNIDADE NOVA JERUSALÉM, AM (FOLHAPRESS) – A extração da piaçaba na região do médio rio Negro, por meio de um modelo rudimentar de endividamento dos trabalhadores, inclui a exploração de yanomamis que vivem em aldeias da terra indígena situadas no lado do Amazonas.

A terra yanomami é a maior do Brasil. O território tem 9,6 milhões de hectares, o equivalente a 16 áreas do tamanho de Brasília, e se estende por Roraima e Amazonas.

No lado de Roraima, onde estão 17 mil yanomamis, os indígenas vivenciam uma crise humanitária.

O avanço do garimpo ilegal e de 20 mil invasores, estimulados pelo governo Jair Bolsonaro (2018-2022), provocou uma explosão de casos de malária e de doenças associadas à fome, como desnutrição grave, diarreia aguda e pneumonia. Em 20 de janeiro, o governo Lula (PT) declarou estado de emergência em saúde no território.

O outro lado da terra indígena, no Amazonas, é menos populoso: são 10,3 mil yanomamis. Parte deles vem passando por um processo oculto de exploração, sem sinal de reação por parte do governo federal.

O apagão da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) na região –iniciado em 2018 no governo Michel Temer (MDB), agravado nos anos de Bolsonaro e mantido nos primeiros meses da gestão de Lula– resultou em um avanço da presença de indígenas na extração da piaçaba, a fibra de uma palmeira ainda usada largamente na fabricação de vassouras.

A reportagem da Folha foi à região de Barcelos (AM), percorreu por quatro dias os rios Negro e Padauiri (afluente do Negro) e constatou a exploração de yanomamis exercendo a atividade. Há indícios de retirada da fibra de dentro do território demarcado por pessoas que não vivem na área.

Os indígenas percorrem longas jornadas até comunidades ao longo do rio Padauiri, fora da área demarcada, em viagens que duram três dias em embarcações com motores de baixa potência –as “rabetinhas”.

O destino mais frequente é a comunidade Nova Jerusalém, que surgiu há 25 anos, em torno de um entreposto da piaçaba. Vivem hoje em Nova Jerusalém 20 famílias, entre indígenas barés e descendentes de soldados da borracha –os nordestinos levados à Amazônia profunda para trabalharem em seringais.

A escola da comunidade, em estrutura de madeira, está caindo aos pedaços. Só existe ensino até o quarto ano da etapa fundamental. Não há posto de saúde. Não há soro antiofídico, nem cloroquina para malária. A energia vem de um gerador a diesel, com hora marcada para a geração.

DÍVIDA POR FARINHA, BISCOITO E COMBUSTÍVEL

Os yanomamis viajam atrás de mantimentos básicos –como farinha e biscoito– e combustível, necessários para o trabalho na extração de piaçaba ao longo de semanas. Esses mantimentos são comercializados pelos chamados patrões —pessoas consolidados há décadas nesse negócio, que lucram com o aviamento e com a venda da piaçaba— e patrõezinhos —moradores pobres das comunidades—, instalados ao longo dos afluentes do rio Negro.

O pagamento pelos produtos é feito em rolos de piaçaba, e dívidas são geradas com os patrões. É um modelo fixo, aplicado a qualquer um que vive de extrair a fibra amazônica. Teve poucas variações ao longo do tempo, e foi herdado da exploração da borracha nos séculos 19 e 20.

Além das longas jornadas, do aviamento (o nome dado a esse modelo de exploração econômica) e do endividamento, os yanomamis criam uma relação de dependência com as comunidades, inclusive com atuação conjunta com indígenas de outras etnias –especialmente os barés– e com não indígenas em piaçabais.

A reportagem detectou indícios de que parte da piaçaba extraída e destinada a patrões nas comunidades, que seguem para Barcelos, Manaus e a outros estados, é proveniente da Terra Yanomami.

Para chegar a Nova Jerusalém, são necessários quase dois dias num motor com potência mediana. As pequenas comunidades no caminho dependem da renda da piaçaba. Os rolos, ou toros, como são chamados pelos moradores, são avistados na entrada de cada um desses lugares. Ficam ali aguardando a balsa operada por um dos patrões que compram o produto.

Um toro pesa entre 40 e 50 kg. O preço do kg de piaçaba varia muito. A reportagem, ao longo das comunidades no rio Padauiri, ouviu relatos de R$ 2,40, R$ 2,80, R$ 3,20, R$ 3,80, R$ 4. A qualidade da fibra é determinante do preço.

A comunidade Tapera, onde vivem barés e tukanos, é um dos entrepostos para a piaçaba. Fica no começo do rio Padauiri, e é usada por um dos patrões da piaçaba, Antônio Lacerda, o Tonico, 67, para o acúmulo de toros. Isso facilita o transporte em balsa até Manaus.

Na Tapera, já há fluxo de yanomamis. Muitos deles chegam até Barcelos, para o saque de benefícios como o Bolsa Família e aposentadorias.

Tonico tem um ponto fixo para aviamento em Nova Jerusalém, mais acima no rio Padauiri. É essa a comunidade com fluxo mais intenso de yanomamis piaçabeiros. Eles passam dias no lugar. Muitos dos moradores manifestam incômodo com a presença dos indígenas.

“Os yanomamis começaram a descer assim que a comunidade passou a existir. Eu tinha até medo de índio”, diz Aldenora Ferreira, 68, mulher de Antonino, também pioneira de Nova Jerusalém. “Eles vêm das malocas deles atrás de alimentação.”

O endividamento dos indígenas com patrões e patrõezinhos é relatado por moradores da comunidade. É comum que os yanomamis passem um mês em áreas de piaçabais e retornem com 10 a 15 toros da fibra, insuficientes para o custeio de mantimentos.

Em um galpão de madeira, lotado de mantimentos diversos, Tonico afirma que chega a comercializar 30 toneladas de piaçaba por mês.

Para outros indígenas, são gerados saldos entre o custo de mantimentos e do combustível e o valor da piaçaba entregue, com pagamentos da diferença em dinheiro, segundo Tonico. Para os yanomamis, a lógica é distinta, diz o patrão.

“O yanomami ganha o crédito de R$ 2.000, por exemplo, mas volta com uma piaçaba de R$ 600. Fica endividado, mas não paga”, afirma Tonico. “Eu financiava 14 grupos de yanomamis. Perdi entre R$ 80 mil e R$ 90 mil. Não financio mais.”

Os indígenas, porém, seguem adquirindo mantimentos de Tonico, como a reportagem constatou. Alguns grupos são ligados a patrõezinhos pobres.

Ainda atua na comunidade a representante de outro patrão antigo, Luiz Cláudio, o Carioca. Ele tem um galpão de piaçaba em Barcelos. A reportagem não o localizou na cidade, nem o funcionário que o representa.

INDÍGENAS TÊM POUCA FLUÊNCIA EM PORTUGUÊS E DIFICULDADE PARA ENTENDER PREÇOS DO SISTEMA

Indígenas de recente contato, os yanomamis têm pouca fluência na língua portuguesa e dificuldade de compreensão dos preços praticados no aviamento –tanto dos mantimentos adquiridos quanto do quilo da piaçaba.

Há ainda dificuldade de interação com os moradores das comunidades e baixa ou nenhuma organização em torno de lideranças ao longo das jornadas feitas rio abaixo e acima.

Os grupos que passam por Nova Jerusalém, por exemplo, são formados principalmente por yanomamis jovens. Uma parcela expressiva aparenta ser adolescente.

Nas comunidades, é comum que outros indígenas e que não indígenas se refiram aos yanomamis como “não civilizados”, “preguiçosos”, “ladrões”. Ou simplesmente como “indígenas”. Os demais são “brasileiros”.

ROTINA DE TRABALHO PODE ESTAR ASSOCIADA À DOENÇA DE CHAGAS

A rotina em piaçabais pode ser a causa de incidência da doença de Chagas entre yanomamis e entre moradores de comunidades do Padauiri.

O polo do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami em Barcelos detectou casos de doença de Chagas em dois adolescentes yanomamis em 2022, um de 14 e outro de 16 anos. Eles são piaçabeiros e chegaram à cidade após passagem por Nova Jerusalém, segundo técnicos do DSEI. Em 2021, foi detectado um caso da doença em um homem yanomami na faixa dos 50 anos.

Pesquisas mostram que, entre os vetores da doença, está um barbeiro incidente nas fibras coletadas. Há pouco tempo, uma equipe médica detectou seis casos de doença de Chagas em Nova Jerusalém.

Antonino “Pitera”, 71, é um dos que descobriram ter a doença. Ele é filho de um maranhense soldado da borracha e pioneiro da comunidade.

“Tem muita gente com doença de Chagas. O povo diz que é por causa do ‘piolho’ da piaçaba”, diz Antonino. “Às vezes, numa ‘colocação’ [acampamento na mata para extração da fibra], matam de 20 a 30 ‘piolhos’ numa noite.”

RELATÓRIO DE 2011 JÁ APONTAVA ENDIVIDAMENTO DE INDÍGENAS

Um relatório da Asiba (Associação Indígena de Barcelos) e da FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) ao MPT (Ministério do Trabalho) em 2011 já citava o endividamento de indígenas com patrões. O relatório apontou Tonico e Carioca como “donos de igarapés” na região.

Outro apontamento feito, no mesmo documento, foi sobre a atuação da Coopiaçamarin (Cooperativa de Piaçabeiros do Alto e Médio Rio Negro). A cooperativa era liderada por patrões, e não por trabalhadores da extração da piaçaba. E assim permanece. O presidente é um patrão, Seder Katz Nara, que atua com aviamento e compra da fibra.

Ele diz que já não faz negociações diretas com os yanomamis e que todo o trabalho, hoje, é no âmbito da cooperativa. São 280 cooperados, e 2.000 piaçabeiros na região, conforme Seder. “Existe endividamento dos indígenas. Antigamente, já aconteceu de negociar diretamente com eles, mas minha empresa fechou.”

A exploração dos yanomamis na piaçaba ocorre ainda em outros dois afluentes do rio Negro, os rios Aracá e Preto. O fluxo mais intenso é no Padauiri, mais especificamente no curso do igarapé Tabaco.

A reportagem acompanhou o transbordo de rolos de piaçaba numa cachoeira no Tabaco, ação necessária em razão da impossibilidade de navegação pela queda d’água. Nos grupos que desciam com os carregamentos da fibra, não havia yanomamis. Os piaçabeiros diziam navegar por horas, rumo a Nova Jerusalém. Dali até o limite da terra yanomami, são 6 km em linha reta.

A Funai já atuou na intermediação e compra da piaçaba dos yanomamis, inclusive com a existência de cantinas de mantimentos, o que evitava o avanço de atravessadores. Há referências em documentos a essa intermediação até 2011.

Em 2018, houve o desmonte de uma CTL (coordenação técnica local) da Funai que funcionava em Barcelos para atender os yanomamis, segundo José Ribamar Caldas Filho, técnico indigenista que atua no órgão na cidade. A coordenação regional referente à terra yanomami fica em Boa Vista (RR).

Ribamar é um coordenador substituto. Passa 15 dias no município e volta a São Gabriel da Cachoeira (AM), onde atua.

A Funai em Barcelos tem apenas um servidor efetivo e um terceirizado. As fiscalizações na região dos piaçabais são praticamente inexistentes, tanto pelo desmonte de pessoal quanto pelo fato de o território onde ocorre exploração da fibra –chamado Terra Indígena Aracá-Padauiri, vizinha à Terra Indígena Yanomami– não ser demarcado.

“Nos rios Padauiri, Aracá e Demeni [afluentes do rio Negro], são 4.600 yanomamis. Todo mês, 300 indígenas vêm para a cidade para receber benefícios”, diz Ribamar. “É preciso reativar as CTLs, mandar servidores para cá, criar uma coordenação regional para os yanomamis no Amazonas.”

VINICIUS SASSINE E LALO DE ALMEIDA / Folhapress

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