110 anos de Vinicius de Moraes: a infância, juventude e a vocação para poesia

Nesta quinta-feira, dia 19 de outubro de 2023, completamos exatos 110 anos do nascimento de um dos maiores letristas da música popular brasileira de todos os tempos: Vinicius de Moraes. Para celebrar a data, preparamos uma semana inteira repleta de homenagens a este grande artista, sua obra, trajetória e genialidade. Começamos hoje, com o início dessa história: a infância, juventude e a vocação de Vinicius de Moraes para poesia.

Vinicius de Moraes trabalhando em Los Angeles | Foto: viniciusdemoraes.com.br

A importância de Vinicius de Moraes para a música brasileira

Praticamente uma lenda de nossa história, a contribuição do também cantor, compositor, dramaturgo, crítico, roteirista e diplomata carioca para a cultura do nosso país é imensurável.

Quase todos os maiores nomes da música nacional gravaram alguma composição de Vinicius, que – ao lado de Tom Jobim e João Gilberto – fez história, ao tornar-se um dos fundadores da Bossa Nova, movimento que transformou para sempre o DNA da música popular brasileira, no fim dos anos 50.

Sua obra é vastíssima, passando pela literatura, teatro, cinema e música. Mas Vinicius de Moraes sempre considerou a poesia como sua primeira e maior vocação, e dizia que toda a sua atividade artística derivou do fato de ser poeta. 

A infância e a vocação para poesia

O Poetinha, como era apelidado, nasceu em 1913, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, e, aos três anos de idade, mudou-se com a família para o bairro de Botafogo, com o qual construiu uma estreita relação ao longo de sua vida.

Em 1922, com apenas nove anos, Vinicius já escrevia os primeiros versos e poemas na escola. Nos anos que se seguiram, participou intensamente das atividades artísticas escolares, cantando no coro da igreja, e, também, atuando e cantando em peças infantis. 

Em 1924, realizou os primeiros escritos poéticos levados a sério, ao lado de colegas de colégio e, em 1927, formou seu primeiro conjunto musical com os amigos e irmãos Paulo e Haroldo Tapajós, compondo então suas primeiras canções.

Com Haroldo, compôs a canção Loura e Morena, e – com Paulo – a Canção de Uma Noite.

Em 1928, Vinicius conheceu o Cineclube Chaplin Club, que causou grande impacto em suas ideias sobre cinema. Em 1929, tornou-se Bacharel em Letras pelo Colégio Santo Ignácio.

A juventude de Vinicius de Moraes: o impacto de Otávio de Faria

Com 17 anos, entrou na Faculdade de Direito da Rua do Catete e lá conheceu um grupo de intelectuais que marcaria definitivamente sua vida.

No Centro Acadêmico de Estudos Jurídicos e Sociais, Vinicius conviveu com mestres como o futuro escritor e jornalista Otávio de Faria, que foi seu grande incentivador no campo literário.

Em 1932, publicou – pela primeira vez – um poema de sua autoria, na revista A Ordem, chamado A Transfiguração da Montanha.

TRANSFIGURAÇÃO DA MONTANHA
E uma vez Ele subiu com os apóstolos numa montanha alta
E lá se transfigurou diante deles.
Uma auréola de luz rodeava-lhe a cabeça
Ele tinha nos olhos o paroxismo das coisas doces
Sua túnica tinha a alvura da neve
E nos seus braços abertos havia um grande abraço a toda a humanidade
A natureza parou estática
Só os pássaros cantavam melodias
Melodias doces como os olhos Dele
E veio uma nuvem grande e cobriu os apóstolos
E se ouviu uma voz:
“Este é meu filho bem-amado, em quem tenho posto todas as minhas
complacências; escutai-o!”
E os apóstolos escutaram a grande voz da nuvem, e se prostraram
E quando eles ergueram os olhos não havia mais nuvem
A natureza já não estava mais parada
Tudo continuava
Como os olhos Dele continuavam doces
E Ele lhes disse:
“Não faleis desta visão até que o filho do homem ressuscite dos mortos”
E lançando os olhos em torno Ele viu a terra embaixo
Viu a terra do alto da montanha
E viu a outra montanha do outro lado da terra
Era uma pedra imensa
Dominava tudo
De baixo, a terra olhava para a montanha
Admirada!
Ela tinha sido precipitada para cima
Pelas grandes forças da natureza
Na sua base, onde a floresta escorre em seiva
Onde pelos grandes troncos descem óleos vermelhos
E onde as folhas berram um cheiro enorme de mato bravo,
Os pássaros viviam na felicidade profunda de seus cantos
Grandes cobras dormiam nos desenhos de sol
E as borboletas eram fecundadas em pleno vôo. Às vezes vinha o vento
Entrava na selva
E levava até em cima um cheiro enorme de mato bravo.
A montanha tinha em si toda a natureza
Tinha um rio que dormia nos desenhos de sol
E que de repente acordava e pulava nas cascatas.
Ele viu tudo
Viu a montanha e viu a floresta
Viu principalmente a floresta
E amou muito a montanha
A montanha que possuía toda a natureza
Menos Ele
Seus divinos lábios entreabriram-se num sorriso
E ele falou para Deus:
“Dia virá em que hei de ter aquela pedra por trono
e lá de novo eu me transfigurarei!”

Depois tudo mudou
O mundo girou sempre, andou sempre
O mundo judeu errante.
Não parava na catástrofe
As guerras se sucediam
Os flagelos se sucediam
Andavam, sempre para a frente, sempre para a frente
Flagelos judeus errantes
O grande sentimento era o ódio
Ódio de tudo
Ódio grande
De corações pequenos
Os homens só tratavam de si
As mulheres tratavam de todos
Não mais a beleza da vida
Não mais o amor.
O tigre desperta e mata tudo
Mata os pequeninos que choram de medo
Mata as mães que têm os olhos despertos nas grandes noites da vida
E os pais que têm a fronte enrugada pelas preocupações.
Mata tudo.
Quer matar até Deus
Porque sabe que Ele vê todas as coisas
Vê os pequeninos que morrem
Vê os pais e as mães que morrem
E porque tem medo da Sua justiça.
Nas grandes sociedades havia muitas festas
Havia muitas festas e muitos vícios
Os homens bebiam para esquecer o dia de amanhã
E bebiam no dia de amanhã para esquecer o dia que passou
As mulheres bebiam para imitar os homens
E fumavam também
Não mais a arte
Não mais a poesia
A arte está na alma dos homens que bebem
A poesia canta a arte dessas almas bêbadas
Que é da poesia profunda da natureza?
Que é da arte da natureza?
Morreu.
Morreu com a alma do homem.
A alma do homem é como o amor morto
Onde todas as coisas bóiam à superfície
Ai! O tempo em que a alma do homem era o oceano
O grande oceano que guarda pérolas e possui vegetações esquisitas
E onde a luz bóia à superfície!
Mas o mundo mudou.
Ele foi esquecido
A transfiguração foi esquecida
Os homens só se lembraram Dele
Ou para ofendê-lo enquanto viviam
Ou para temê-lo covardemente na hora da morte.

Mas uns houve que não perderam o sentido da vida
Que guardaram na alma a grande simplicidade das coisas boas
Uns, que perdoavam
Uns, que socorriam e sorriam para a morte gloriosa
Eles tinham dentro da roupa preta que os vestia
A alma branca dos que são os bem-aventurados de Deus
Eles eram poucos
Foram aumentando
Pregaram aos outros o sentido da vida que eles possuíam
O mundo não escutava
Tinha a surdez profunda da inteligência
A vontade perseverante contudo fez efeito
E um dia, alto, formidável
A bela cabeça nas nuvens
E os pés na rocha bruta
Ele surgiu num esplendor de divindade
Transfigurado
Os braços abertos como num abraço
E os olhos suaves olhando a terra embaixo
Apareceu
Branco e enorme
Sobre a rocha escura e enorme
A rocha e Ele
Se unificaram na mesma beleza
O grupo formidável
Vivia a impressão
Da grande cena bíblica
A pedra que guardava a floresta
E o grande gigante meigo
Era como a cena bíblica
Da fundação da Igreja
A pedra enorme
Era a própria força espiritual de são Pedro
Posta na matéria
A base
A pedra da Igreja
E em cima, Ele, Senhor de todas as coisas
Belo e agigantado
Olhando as coisas embaixo
Com o olhar bom do que foi Homem
Com o amor do que […] o único Deus.
Senhor!
Tu estás lá
E tu estás em todos os lugares
E ouço a tua voz na música do mundo
E sinto a tua mão na plástica das coisas
Tu és o ponto de partida
Tu és o caminho
E és o fim do caminho
És o cardo que fere os pés
E a grama macia que os repousa
E a grande tempestade de vento
E o ar parado que sereniza.
És o pranto dos olhos
E o riso da boca
És o sofrimento do mundo
Numa promessa de eterna felicidade
És Deus
Deus que vê todas as coisas e a todas dá remédio
E que é o único perdão:
Amém.

No mesmo ano, os irmãos Tapajós gravaram Loura e Morena e Canção da Noite, compostas quatro anos antes, com Vinicius

O primeiro livro de poemas

Em 1933, Vinicius de Moraes publicou o seu primeiro livro de poemas: O Caminho Para a Distância. E, em 1935, publicou o seu segundo livro, Forma e Exegese, muito elogiado pela crítica. Em 1936, lançou o livro Ariana, a Mulher, com um único e longo poema. 

Tornou-se, então, frequentador assíduo das rodas literárias e boêmias do Rio de Janeiro. Em uma delas, conheceu o poeta Manuel Bandeira, que foi seu amigo para o resto da vida. Nesta época, Vinicius já era amigo também de nomes como Lucio Costa, Carlos Drummond de Andrade e Di Cavalcanti. 

Em 1938, Vinicius lançou o seu quarto livro: Novos Poemas. A maturidade de seus versos fez com que sua poesia se consolidasse como uma das principais da chamada Geração de 30.

Seus colegas contemporâneos e nomes já consolidados como Mário de Andrade (a quem Vinicius dedicou o poema A Máscara da Noite) elogiaram publicamente o livro.

A MÁSCARA DA NOITE
Rio de Janeiro , 1954

Sim, essa tarde conhece todos os meus pensamentos
Todos os meus segredos e todos os meus patéticos anseios
Sob esse céu como uma visão azul de incenso
As estrelas são perfumes passados que me chegam…

Sim! essa tarde que eu não conheço é uma mulher que me chama
E eis que é uma cidade apenas, uma cidade dourada de astros
Aves, folhas silenciosas, sons perdidos em cores
Nuvens como velas abertas para o tempo…

Não sei, toda essa evocação perdida, toda essa música perdida
É como um pressentimento de inocência, como um apelo…
Mas para que buscar se a forma ficou no gesto esvanecida
E se a poesia ficou dormindo nos braços de outrora…

Como saber se é tarde, se haverá manhã para o crepúsculo
Nesse entorpecimento, neste filtro mágico de lágrimas?
Orvalho, orvalho! desce sobre os meus olhos, sobre o meu sexo
Faz-se surgir diamante dentro do sol!

Lembro-me!… como se fosse a hora da memória
Outras tardes, outras janelas, outras criaturas na alma
O olhar abandonado de um lago e o frêmito de um vento
Seios crescendo para o poente como salmos…

Oh, a doce tarde! Sobre mares de gelo ardentes de revérbero
Vagam placidamente navios fantásticos de prata
E em grandes castelos cor de ouro, anjos azuis serenos
Tangem sinos de cristal que vibram na imensa transparência!

Eu sinto que essa tarde está me vendo, que essa serenidade está me vendo
Que o momento da criação está me vendo neste instante doloroso de sossego em mim mesmo
Oh criação que estás me vendo, surge e beija-me os olhos
Afaga-me os cabelos, canta uma canção para eu dormir!

És bem tu, máscara da noite, com tua carne rósea
Com teus longos xales campestres e com teus cânticos
És bem tu! ouço teus faunos pontilhando as águas de sons de flautas
Em longas escalas cromáticas fragrantes…

Ah, meu verso tem palpitações dulcíssimas! — primaveras!
Sonhos bucólicos nunca sonhados pelo desespero
Visões de rios plácidos e matas adormecidas
Sobre o panorama crucificado e monstruoso dos telhados!

Por que vens, noite? por que não adormeces o teu crepe
Por que não te esvais — espectro — nesse perfume tenro de rosas?
Deixa que a tarde envolva eternamente a face dos deuses
Noite, dolorosa noite, misteriosa noite!

Oh tarde, máscara da noite, tu és a presciência
Só tu conheces e acolhes todos os meus pensamentos
O teu céu, a tua luz, a tua calma
São a palavra da morte e do sonho em mim!

Está gostando de saber mais sobre a vida e a obra de um dos nossos maiores poetas? Então acompanhe os próximos capítulos dessa história amanhã, na continuação da nossa Semana Especial 110 anos de Vinicius de Moraes!

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTICIAS RELACIONADAS