É na infância que se formam os vínculos, as primeiras descobertas, os afetos que ajudam a nos tornar quem somos. E um dos melhores lugares para resgatar esses momentos é a poesia. A literatura brasileira está repleta de versos que falam da inocência, da liberdade e das dores dos primeiros anos de vida.
Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Manoel de Barros, Adélia Prado e outros autores contemporâneos nos reconectam com o tempo do brincar, da mãe, do cheiro de terra molhada e do colo.
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1. “Infância” – Carlos Drummond de Andrade
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada costurando.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé.
Comprida história que não acaba mais.
Um dia puxa outro dia, e outro dia.
Um capítulo puxa outro capítulo,
e suspenso no meio da narrativa
eu deixava o livro e saía para o quintal.
Via o mundo pequeno e grande.
Coisas de pouca significação
começavam a ter significação diferente.
Eu via um formigueiro aberto, via uma folha caída,
via um pedaço de pau, via o céu,
e admirava essas coisas com um peso e um tamanho
que agora não posso mais admirar.
Sentava-me no chão, punha o livro no colo
e continuava a história de Robinson Crusoé.
Neste poema, Drummond reconstrói com delicadeza a atmosfera familiar e silenciosa de sua infância em Itabira. A imagem do pai, da mãe, da cidade e da paisagem mineira se fundem em um tempo quase imobilizado, marcado pelo afeto e pelo cotidiano.
Ao mesmo tempo, a natureza que o cerca com mangueiras, o quintal, revela a importância do ambiente na construção da subjetividade. A infância, para Drummond, é, ao mesmo tempo, uma paisagem física e emocional.
2. “Ou Isto ou Aquilo” – Cecília Meireles
Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
E vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
Esse poema de Cecília Meireles, publicado originalmente em Ou Isto ou Aquilo (1964), traduz os pequenos dilemas da infância. Remete à memória afetiva dos primeiros questionamentos e da formação do senso de escolha, temas ligados à construção da subjetividade infantil. É um dos poemas mais reconhecidos da autora entre o público infantojuvenil.
Cecília Meireles, uma das maiores vozes da segunda geração do modernismo brasileiro, usa a simplicidade como estratégia estética. O poema mostra que desde cedo somos levados a fazer escolhas, às vezes banais, às vezes simbólicas. A infância é retratada como um campo de decisões difíceis, tudo parece importante demais para ser deixado de lado. A leveza da rima esconde uma reflexão profunda sobre o tempo, a perda e a irreversibilidade das escolhas.

3. “Canção para ninar menino grande” – Mário Quintana
Dorminhoco, dorme logo,
Que o sono já vem vindo,
Trazendo no seu cavalo
Um brinquedo reluzindo.
Dorme logo, que ele passa
Correndo sem deixar nada…
Dorme logo, meu pequeno,
Coisa mais bonitinha
Do que brinquedo encantado:
É o teu soninho, filhinho,
Dorme logo, meu danado!
Autor de uma obra marcada pela fantasia e pela ternura, Quintana (1906–1994) transforma o ato cotidiano de colocar uma criança para dormir em um gesto poético. A imagem do sono que chega montado num cavalo com brinquedo remete ao mundo da infância, onde realidade e imaginação se misturam.
Ao mesmo tempo, o poema carrega o afeto familiar, sobretudo o materno, que embala e protege. É um retrato da infância como tempo de encantamento e cuidado.
4. “Com licença poética” – Adélia Prado
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
Vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado para a mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Neste trecho do poema inaugural do livro Bagagem (1976), Adélia Prado traz a infância como um ponto de partida simbólico. O nascimento, interpretado aqui como destino, é apresentado com um tom bíblico e ao mesmo tempo cotidiano, marca registrada da autora mineira.
Embora não trate diretamente de infância no sentido temporal, o poema evoca o momento inicial da vida, quando tudo ainda está por ser descoberto. A bandeira que se carrega pode ser lida como a herança afetiva e cultural que nos forma. Em Adélia, a memória familiar e religiosa são sempre centrais na construção poética do eu.

5. “O menino que carregava água na peneira” – Manoel de Barros
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
Poeta do Pantanal, Manoel de Barros cria nesse poema uma metáfora para o fazer poético e o olhar infantil. A tentativa de carregar água na peneira, algo impossível, torna-se um ato simbólico da persistência imaginativa, própria da criança e do poeta.
O menino representa uma sensibilidade voltada ao ínfimo, ao descartado, ao que escapa do olhar adulto. A infância, nesse caso, é um estado de percepção que valoriza o que é simples e sensorial.
6. “Eu Sou a Monstra” – Hilda Hilst
Quando a poesia nos devolve o que fomos
Crescer é reorganizar o que nos marcou. Versos como os que reunimos aqui funcionam como cápsulas do tempo: guardam o cheiro da infância, os sons do quintal, os gestos de cuidado. E, ao revisitá-los, nos lembramos quem somos.



