Você já parou para pensar que a música “Tô”, de Tom Zé, tem muito mais contradições do que a própria letra composta pelo genial artista baiano já traz?
“To bem de baixo pra poder subir
To bem de cima pra poder cair
To dividindo pra poder sobrar
Desperdiçando pra poder faltar
Devagarinho pra poder caber
Bem de leve pra não perdoar
To estudando pra saber ignorar
Eu to aqui comendo para vomitar
Eu to te explicando
Pra te confundir
Eu to te confundindo
Pra te esclarecer
To iluminado
Pra poder cegar
To ficando cego
Pra poder guiar
Suavemente pra poder rasgar
Olho fechado pra te ver melhor
Com alegria pra poder chorar
Desesperado pra ter paciência
Carinhoso pra poder ferir
Lentamente pra não atrasar
Atrás da vida pra poder morrer
Eu to me despedindo pra poder voltar”
Trazendo toda complexidade e inventividade de um dos artistas mais geniais que o Brasil já conheceu, com essa letra cheia de contradições e paradoxos (uma parceria com Élton Medeiros), Tom Zé – mais uma vez – desafia a lógica convencional.
Na música “Tô”, o baiano explora a ideia de que os opostos se complementam e de que a vida é repleta de dualidades. De que é necessário experimentar um extremo para compreender ou experienciar o outro.
Essas antíteses, na verdade, revelam uma busca por equilíbrio e por uma compreensão mais profunda da existência humana, que é complexa por si só.
Tom Zé nos mostra em “Tô”, que muitas vezes, é preciso se perder pra se encontrar. Ou de que pode ser desordem que as coisas se ajeitem.
O compositor é genial ao brincar com as palavras, fazendo com que a linguagem e os conceitos nos desafiem a pensar fora da caixa. Esse é Tom Zé!
Acontece que não são só as oposições presentes na letra da canção que trazem a contradição para a música “Tô”.
Há presente na nossa história também uma grande contradição com relação a essa música.
Por conta da inventividade e originalidade presentes na obra de Tom Zé, o artista foi muito injustiçado e excluído pela indústria musical, que dizia não saber onde encaixar ou rotular sua música.
Ele mesmo não queria rótulos: com sua ruptura de padrões – que juntava o folclore riquíssimo do sertão baiano, um certo primitivismo atemporal e uma elaboração extremamente avançada, à frente de seu tempo – dizia: “Procuro fazer a antimúsica, porque se é pra fazer o que já está feito…”.
Por muitos anos, Tom Zé não era sequer escutado pelo público o brasileiro, ficando totalmente esquecido.
Mas, ao mesmo tempo, Chacrinha – apresentador mais popular do país e conhecido por levar ao seu programa grandes nomes da música brasileira – usava uma frase justamente da música “Tô”, lançada no álbum “Estudando o Samba”, de 1976, época em que vivia esse desprezo por parte da mídia e do público brasileiro.
Chacrinha sempre dizia em seu programa: “Eu não vim pra explicar, eu vim pra confundir!”.
Quer contradição maior do que essa? O comunicador musical mais popular do país, fazendo referência à uma música de um artista que era totalmente desprezado pelo grande público?
Vamos entender mais sobre a trajetória de Tom Zé, para saber como termina essa história!

De rejeitado a exaltado: a contradição Tom Zé
Baiano de Irará, interior do estado, nascido em 1936, Tom Zé aprendeu a gostar de música ainda pequeno, ouvindo Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, samba-de-roda e os grandes cantores do rádio.
Em 1961, mudou-se para Salvador para iniciar profissionalmente como músico. Tornou-se diretor de música do CPC (Centro Popular de Cultura), onde ficou até 1964.
Aos 26 anos, em 1962, passou em primeiro lugar no vestibular da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, onde foi um dos membros fundadores do “Grupo de Compositores da Bahia”, de música erudita.
Em 1964, participou do show “Nós, Por Exemplo”, junto com outros baianos: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia.
Em 1967, depois de se formar, foi professor de Contraponto e Harmonia na própria Escola de Música, onde deu aulas para Moraes Moreira!
Em 1968, Tom Zé mudou-se definitivamente para São Paulo e venceu o 4º Festival de Música Popular Brasileira com a canção “São São Paulo Meu Amor”, ganhando ainda o prêmio de melhor letra com “2001”, parceria com Rita Lee, que recebeu a interpretação dos Mutantes.
Nesta época, Tom Zé iniciou – junto com outros grandes nomes da música popular brasileira como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Torquato Neto, Rogério Duprat, Capinam e Os Mutantes – o Movimento Tropicalista: movimento de contracultura, que transcendeu tudo o que já havia em termos de produção artística no Brasil. A Tropicália contemplou e internacionalizou a música, o cinema, as artes plásticas, o teatro e toda a arte brasileira.
O movimento surgiu sob a influência das correntes artísticas da vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira, como o rock e o concretismo, misturando manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais, para criar algo inovador, que interviesse na cena de indústria cultural e de cultura de massas da época. E que representasse uma mudança de parâmetros, que atendesse também aos anseios da juventude da época.
Ainda em 1968, Tom lançou – ao lado de seus companheiros de Movimento Tropicalista – o álbum “Tropicália ou Panis Et Circense”. O baiano participou com a faixa “Parque Industrial”, uma crítica aos meios de comunicação de massa.
Também em 1968, Tom Zé lançou também seu primeiro disco solo, que levou seu nome e o subtítulo de “Grande Liquidação”. As canções revelam o conteúdo de reflexão sobre a vida urbana, sobre a acelerada transformação de costumes na vida brasileira. Como: “São Paulo, São Paulo”; “Namorinho de Portão”; e “Profissão de Ladrão”.
Em 1970, o artista lançou o seu segundo álbum, Tom Zé, que trouxe músicas importantes como: “Qualquer Bobagem” (parceria de Tom com os Mutantes Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias) e “O Riso e a Faca”.

No ano seguinte, seu terceiro disco, trouxe a clássica “Menina Amanhã de Manhã (O Sonho Voltou)” (parceria com Perna Fróes); e “Senhor Cidadão” (parceria com Augusto de Campos).
Seu quarto disco, o experimental “Todos os Olhos”, de 1973, comprovou aquela dificuldade de classificação de sua obra e mostrava o que Tom Zé buscava.
Sem ter como enquadrar sua música, as emissoras de rádio se afastaram e levaram Tom Zé ao esquecimento por parte do grande público. Pelos próximos 17 anos, ele sobreviveu fazendo shows em universidades pelo Brasil.
Em “Todos os Olhos”, para afrontar a censura imposta pela ditadura militar da época, que barrava muitas capas de disco, Tom simulou uma bolinha de gude sendo segurada por um ânus.
A capa passou batida pelos censores, e só muitos anos depois se soube que aquela foto era a de uma boca segurando a bolinha de gude e não de um ânus. Entre as canções do disco estão a faixa-título, “Quando Eu Era Sem Ninguém” e “Augusta, Angélica E Consolação”.
No ano seguinte, veio o inventivo disco “Estudando o Samba”, que traz a música “Tô”. O álbum foi redistribuído no final da década de 1980, pelo ex-Talking Head, David Byrne, quando Tom Zé se preparava para deixar a carreira musical, por dificuldade de sobrevivência.
Byrne foi “fisgado” pela capa inusitada ao entrar em uma loja no Rio de Janeiro em 1986, procurando discos e artistas para o seu próprio selo independente.
A capa é quase inteiramente em branco, exceto pelo próprio nome da obra e do artista (bem menor) e por uma corda e um arame farpado que aparecem no rodapé. Tom Zé queria, com essas linhas, fazer uma referência à ditadura militar então vigente no Brasil, e também à maneira rígida como o samba era executado, com seu ritmo sempre ditado pelos diretores de escolas de samba.
O álbum foi relançado no mercado internacional pelo selo de Byrne – por meio da gravadora Warner Music, em 1990 – em uma compilação chamada “The Best of Tom Zé – Massive Hits”. O disco acabou sendo aclamado pela imprensa internacional, encantada com a inovação do músico, como os jornais norte-americano The New York Times e francês Le Monde; e a revista especializada norte-americana Rolling Stone, provocando uma reviravolta na carreira do baiano.
Depois, em 2007, “Estudando o Samba” foi eleito em uma lista da versão brasileira da revista Rolling Stone como o 35º melhor disco brasileiro de todos os tempos.
Em 1984, lançou o disco “Nave Maria”, ponto de partida para novos caminhos musicais posteriores, que traz canções como a faixa-título, “Mamar no Mundo”, “Teu Olhar” e “Conto de Fraldas”.
Em 1992, veio o segundo disco de Tom Zé na gravadora internacional, pelo selo de David Byrne – “Brazil Classics, Vol. 5: The Hips of Tradition – The Return of Tom Zé”. O artista fez shows em toda a Europa e Estados Unidos, onde colheu resenhas elogiosas.
Mas, o reconhecimento no Brasil estava difícil e shows em grandes capitais do país ainda não aconteciam. Tom Zé começou então os trabalhos para o lançamento do álbum “Com Defeito de Fabricação”, em que cada faixa traz um defeito, como: “Burrice”, “Curiosidade”, “Politicar” e “Cedotardar”.
O disco foi eleito pela revista americana Rolling Stone como um dos melhores da década de 90, e pelo jornal The New York Times como um dos dez melhores álbuns do ano.
Tom Zé passou a ser chamado, nos Estados Unidos, de ”O Pai da Invenção”. O álbum projetou o cantor e compositor também como performer, em uma turnê americana. As turnês européias confirmavam autor e repertório como alvo de interesse do público e da grande crítica internacional.

No Brasil, o álbum foi lançado pela gravadora Trama, em 1998, e as portas para o cenário musical brasileiro foram – finalmente e tardiamente – reabertas para o baiano a partir deste trabalho.
Ainda em 1998, veio o disco “No Jardim da Política”, e, em 2000, Tom Zé lançou o álbum “Jogos de Armar (Faça você Mesmo)”, que não é um CD duplo, mas que vem com dois discos: um contém as músicas gravadas pelo artista e o outro (chamado “CD Auxiliar – Cartilha de Parceiros”), contém as bases para que o ouvinte remixe e crie suas próprias canções.
Esse foi o primeiro lançamento do artista por uma gravadora brasileira – a Trama – depois de mais de 20 anos. Nele estão registrados, finalmente, seus instrumentos experimentais e ousadias formais que o colocam mais uma vez como desafio à criatividade musical de seu tempo: enceradeiras e cantos de lavadeiras nordestinas, expressões verbais contundentes e sonoridades remetendo a Cage e música medieval, recursos costurados numa força brasileira explosiva.
Em 2003, Tom Zé lançou o disco “Imprensa Cantada”, expressando o que o artista chama de “jornalismo cantado”, quando os acontecimentos do presente são o motor das composições.
O próximo disco, de 2005, é uma opereta popular, “Estudando o Pagode – Na Opereta Segregamulher e Amor”, que remete ao Estudando o Samba, de 1976.
No ano seguinte, o disco “Danç-Êh-Sá – Dança dos Herdeiros do Sacrifício”, tem como tema rebeliões e levantes das populações negras e indígenas do Brasil, não muito destacados pela história oficial.
Em 2006 foi lançado o filme “Fabricando Tom Zé”, um documentário de Décio Matos Jr, sobre a vida e obra do músico.
Em 2008, completando a trilogia “Estudando”, Tom Zé lançou o disco “Estudando a Bossa”: “Um pensamento musical de um tropicalista admirador da bossa nova”.
Vários discos vieram na sequência, até o mais recente álbum de Tom Zé: “Língua Brasileira”, lançado em 2022, com dez canções inéditas, que propõe-se a investigar a língua e a cultura brasileiras, celebrando suas especificidades e riquezas, em contraponto à narrativa colonial e simplificadora da “descoberta” do Brasil e da disseminação da língua portuguesa.
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