Hoje vamos conhecer a antológica história da música “Faroeste Caboclo”, sucesso da banda Legião Urbana, que mudou para sempre a história do rock nacional.
A canção é uma composição solo de Renato Russo, escrita em 1979, quando o artista tinha entre 18 e 19 anos e muitos anos antes de ser oficialmente lançada pela Legião Urbana no seu terceiro álbum de estúdio, “Que País é Este? 1978/1987″, em 1987.
Renato Russo nasceu no Rio de Janeiro, mas foi morar em Brasília, quando, em 1978, conheceu o baterista Fê Lemos, e os dois descobriram o gosto em comum pelo punk rock inglês e americano. Como eram raros os punks em Brasília, os dois ficam amigos e começam uma banda, com Renato no baixo, Fê na bateria e André Pretorius na guitarra: o Aborto Elétrico.
Começaram então um movimento punk, nomeado “Turma da Colina”, junto com a Plebe Rude, Os Paralamas do Sucesso e outras bandas de Brasília.
Pretorius, que era filho de um embaixador da África do Sul, completou 18 anos no final de 1979 e teve que voltar para servir o exército no seu país. Renato passou então para a guitarra e assumiu também os vocais da banda. Quem assumiu o baixo foi o irmão de Fê, Flávio Lemos. Pouco depois, as guitarras passam para Ico Ouro-Preto, irmão do Dinho Ouro Preto, ficando Renato apenas com os vocais e grande parte das composições.
A banda se separou em 1982, dando origem – mais tarde – ao Capital Inicial (Fê e Flávio Lemos se juntaram a Dinho Ouro Preto e Loro Jones) e à Legião Urbana. São da época do Aborto Elétrico composições que depois vieram a se tornar grandes sucessos ou no Capital ou na Legião, como: “Que País É Esse?”, “Veraneio Vascaína”, “Fátima” e “Música Urbana”.
Renato já tinha composto “Faroeste Caboclo” lá nos tempos de Aborto Elétrico, mas não mostrou para a banda, porque a música não tinha nada a ver com o estilo musical punk-rock.
Depois a música passou a fazer parte do repertório do trabalho solo de Renato que – a partir de 1982 – passou a se apresentar como “O Trovador Solitário”, e criou também outras canções como “Eduardo e Mônica” e “Música Urbana 2”, que também entraram no repertório da Legião Urbana mais pra frente.
Nessa época, o músico gravou de forma caseira, em seu quarto, uma fita com todo esse repertório. Essa gravação deu origem ao disco “O Trovador Solitário”, em 2008.
Já cansado de tocar sozinho, ainda em 1982, Renato Russo foi em busca de novos parceiros para um trabalho em grupo, seu sonho era atingir o sucesso com uma banda de rock.
A Legião Urbana surgiu quando Renato se juntou ao baterista e compositor Marcelo Bonfá, que já tinha feito parte da banda Dado e o Reino Animal, de Dado Villa-Lobos. Pouco depois, Dado entrou para a Legião, como guitarrista e também compositor.
A história de “Faroeste Caboclo”
A gravação mais antiga que se conhece de “Faroeste Caboclo” data de 1980, em uma fita cassete que Renato Russo gravou com André Pretorius. Sua letra não mudou praticamente nada, a única diferença é que Renato não cantava a parte “desvirginava mocinhas inocentes”, repetindo o verso “Jeremias maconheiro sem vergonha”.
No livro “Letra, Música e Outras Conversas”, que o também cantor e compositor Leoni lançou em 1995, e onde entrevista oito artistas consagrados de sua geração sobre o processo de criação dos compositores, Renato Russo escreveu “Faroeste Caboclo” em duas tardes, sem mudar uma vírgula.
Ele conta que nunca tinha imaginado os personagens antes de escrever a letra e que toda a história foi vindo automaticamente enquanto ia escrevendo: “Eram coisas que mesmo sem querer, sem perceber, já vinha trabalhando há muito tempo e, na hora que vai escrever, vem direto. Eu sei porque foi fácil. Ela tem um ritmo muito fácil na língua portuguesa. É em cima da divisão do improviso do repente. As coisas foram aparecendo por causa das rimas. Se eu falo do professor, ele tem que parar em Salvador. Se fosse outra rima ele ia parar em outro lugar. Basicamente já sabia que tipo de história ia ser. É aquela mitologia do herói, James Dean, rebelde sem causa.”.
A letra de “Faroeste Caboclo” é uma crônica e – como muitas outras músicas de Renato Russo – ela é uma colagem: tem uma parte autobiográfica – que é o triângulo amoroso – e outras mensagens que o artista quer passar: o sonho de Brasília, a repressão, a desigualdade e o tráfico de drogas.
O triângulo amoroso que inspirou a canção foi vivido pelo próprio Renato – e essa é a parte autobiográfica da letra. Flávio Lemos, músico que fez parte do Aborto Elétrico com Renato Russo e depois formou a banda Capital Inicial, contou certa vez em entrevista à Revista Flashback que ficou com uma prima de Renato, por quem o líder da Legião Urbana era apaixonado:
“Ele gostava de uma prima dele, a Mariana, e eu sabia. Mas não rolava nada entre os dois. Fomos viajar pra Búzios, a turma toda, menos Renato. E eu fiquei com a prima dele. Ele considerou aquilo uma traição. Ele me acordou bem cedinho, eu tava morrendo de sono, Renato já tinha passado a noite inteira escrevendo a música Ele me disse que eu era o Jeremias, o ‘Maconheiro Sem Vergonha’, ele era o João de Santo Cristo – olha o nome que ele deu a si mesmo! – e a prima era a Maria Lúcia. Renato criou um épico com essa história. A gente continuou amigo depois. Pode aparecer alguém que conteste, mas é a mais pura verdade.”.
Na verdade, Flávio se confundiu sobre o nome da prima do Renato, o nome dela é Mariane e ela também inspirou canções da Legião, como: “Ainda é Cedo” – do primeiro álbum da banda, em 1985 – “Andrea Doria” e “Acrilic on Canvas” – ambas do álbum “Dois”, de 1986 – e “Mariane”, do álbum “Uma Outra Estação”, de 1997.
A história dessa decepção amorosa de Renato Russo também aparece no livro “Renato Russo, Filho da Revolução” (2009), do jornalista Carlos Marcelo, que conta que – antes desse acampamento em Búzios – o Flávio tinha ido passar as férias de verão na casa dos avós do Renato na Ilha do Governador e teve um breve romance com Mariane, deixando Renato furioso, sentindo-se traído, pois ele gostava da prima desde à infância.

Inspirações musicais de “Faroeste Caboclo””
Tendo as primeiras gravações da canção em um estilo folk, com Renato Russo na voz e no violão, o compositor dizia que se inspirou na música “Hurricane” (“Furacão”, em português) do norte-americano Bob Dylan, lançada em 1976, para compôr “Faroeste Caboclo”
“Hurricane” também é uma canção longa (“Faroeste Caboclo” tem 09:03 minutos de duração e “Hurricane” tem 08:33), que também conta uma história, só que nesse caso é uma história real, do boxeador Rubin Carter, um negro condenado injustamente por um assassinato no auge da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos.
Só que quando a Legião Urbana decidiu gravar essa música, Renato resolveu trazer outras influências, tanto que ela vai alterando os ritmos. Além do já citado repente, toda a primeira parte – que vai até os 02:52 minutos – tem um “quê” de sertanejo, que volta depois no fim da música e o baterista da Legião, Marcelo Bonfá toca inclusive triângulo na faixa.
A banda ainda traz influências do reggae e do próprio rock, e – segundo a ideia original do Renato Russo – ainda era para ter uma parte de baião em “Faroeste Caboclo”, ritmo tradicional nordestino. Na folha em que ele datilografou a letra da música tem até uma anotação de que ele queria que a canção fosse gravada por Luiz Gonzaga, o Rei do Baião.
Uma outra canção que Renato Russo citava como referência para a composição de “Faroeste Caboclo” era “Domingo no Parque” (1967), do baiano Gilberto Gil, que também é uma crônica musical, uma história com começo, meio e fim.

Sobre os personagens de “Faroeste Caboclo”
Renato Russo também contou certa vez em entrevista à Revista Bizz, que João de Santo Cristo não era um menino pobre como talvez a maioria das pessoas imagina quando escuta “Faroeste Caboclo”:
“É engraçado porque o João de Santo Cristo é um garoto de classe média e as pessoas parece que não percebem isso. Ele era filho de um fazendeiro e o pai dele foi assassinado, ele vai pro reformatório porque não tem ninguém para tomar conta dele, mataram praticamente toda a sua família e por isso ele é revoltado.
A música inteira é ele tentando voltar pro meio que conhece. João se vê obrigado a conviver com o pessoal mais pobre, por isso ele percebe aquela coisa de preconceito, coisa que ele nunca tinha visto antes, quer dizer caminha para um outro lado. Acho que pensam em Santo Cristo como um pé rapado ,para mim ele é um heroizinho tipo James Dean.”.
Também nessa entrevista, Renato diz acreditar que as pessoas associaram o João a um menino pobre por causa do momento que o Brasil vivia de 1987 para 1988, com hiperinflação, crise econômica e muitas dificuldades nas vidas das pessoas.
Dez anos depois, naquela entrevista para o livro do Leoni, Renato Russo reconheceu que o “roteiro” de “Faroeste Caboclo” tem uma série de furos, ou coisas que não fazem sentido:
“Se prestar atenção, tem um montão de falhas. Parece que faz sentido, mas por que cargas d’água esse homem encontra esse boiadeiro em Salvador? Que história é essa de trocar ‘eu fico aqui você vai para Brasília’? É por causa da filha? Por que Maria Lúcia fica com Jeremias? Não dá para entender. Você tem que bolar sua própria história.
O máximo a que eu cheguei é que ela era uma viciadona e o Jeremias era tão mal, que disse: ‘se você não casar comigo eu vou matar o João’. Mas também não justifica. E o Santo Cristo? Ele é um banana? A menina apaixonada por ele ele fica andando com Pablo para cima e para baixo. Tem uma porção de coisas na história que não batem!”.
Pra gente não precisa bater, Renato! É genial de qualquer forma!
O legado de “Faroeste Caboclo”
“Faroeste Caboclo” foi censurada para radiodifusão pela presença de palavrões. Porém, foi feita uma edição onde se colocou um sinal sonoro sobre os palavrões e com isso, a música foi liberada. Outras rádios optaram por fazer edições para retirar os palavrões. Apesar disto, a música foi um grande sucesso, tendo sido a 24ª mais tocada de 1988.
Ainda hoje, a canção é uma das mais bem lembradas da banda, estando em todas as coletâneas e álbuns ao vivo da Legião Urbana.
Em maio de 2013, foi lançado o filme “Faroeste Caboclo”, adaptação da canção, dirigida por René Sampaio e com roteiro de Victor Atherino e Marcos Bernstein, a partir da letra original. No elenco, atuam Fabrício Boliveira (João de Santo-Cristo), Ísis Valverde (Maria Lúcia), Felipe Abib (Jeremias) e César Troncoso (Pablo).
A curiosidade é que Renato Russo – que faleceu em 1996, aos 36 anos – planejava fazer um filme de “Faroeste Caboclo”. Ele chegou até a ser procurado por uma produtora na época em que a música estava estourada no país, saiu inclusive uma nota na Revista Bizz sobre isso: “‘Faroeste Caboclo’ vai virar filme – A saga de João de Santo Cristo será transformada em longa metragem pelo diretor Maurício Farias, com roteiro de Ricardo Linhares, Hermano Vianna e Renato Russo.”.
Renato tinha até os seus atores preferidos na época, como contou Dado Villa-Lobos em sua autobiografia: eram Marcos Palmeira para João de Santo Cristo e Fernanda Torres para Maria Lúcia!