Aldir Blanc: história de “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá” e “O Mestre Sala dos Mares”

Hoje, 02 de setembro, seria aniversário de um dos maiores compositores da história da nossa música popular brasileira: Aldir Blanc, compositor das músicas “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá” e “O Mestre Sala dos Mares”.

Além de letrista, Aldir – que nos deixou  em maio de 2020, vítima do Coronavírus, aos 73 anos de idade, poucos meses depois de decretada a Pandemia de Covid-19 – também era cronista e médico. Ele completaria 77 anos hoje.

E, para homenagear o aniversariante do dia e seguir homenageando grandes compositores da nossa MPB – que são tão importantes e têm uma contribuição tão significativa quanto cantores, intérpretes e músicos – nós damos continuidade à série Saudando Grandes Compositores da MPB, em que contamos a história de grandes clássicos das carreiras desses artistas.

Aldir Blanc

Nascido no Rio de Janeiro, em 1946, Aldir Blanc era filho único e teve no avô materno a presença mais afetuosa em sua infância, que praticamente criou o neto na casa de Vila Isabel, bairro onde estariam tipos e cenários fundamentais para os textos e as letras do futuro letrista e cronista.

Aos 11 anos, seus avós foram morar no bairro do Estácio. Com o passar dos anos, o contato com os malandros da área aumentou, levando-o a morar com um primo um pouco mais velho, na Tijuca, que fez com que Aldir conhecesse bailes, noitadas boêmias, mulheres, futebol, blocos de carnaval e a quadra da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, que se tornou sua escola do coração.

Deu seus primeiros passos na música em meados da década de 1960, quando começou a compor aos 16 anos e aos 17 aprendeu a tocar bateria, fundando o grupo Rio Bossa Trio, que – com a entrada do músico Sílvio da Silva – foi rebatizado para GB-4. 

Primeiras parcerias musicais

Com Sílvio, Aldir Blanc firmou sua primeira parceria musical, sendo que uma das canções da dupla – A Noite, a Maré e o Amor – competiu no III Festival Internacional da Canção de 1968.

A partir de 1969, surgiu uma nova parceria na vida de Aldir, com César Costa Filho, compositor de quem foi colega no Movimento Artístico Universitário, que o letrista integrou ao lado de nomes como Ivan Lins e Gonzaguinha.

Dessa parceria, classificou duas canções no II Festival Universitário da Música Popular Brasileira:

  • De Esquina em Esquina, interpretada por Clara Nunes;
  • e Mirante, interpretada por Maria Creuza.

Também nesse Festival, participou com sua canção Nada Sei de Eterno, em parceria com Sílvio da Silva, defendida por Taiguara.

Em 1970, o seu primeiro grande sucesso, Amigo É pra Essas Coisas (parceria com Sílvio da Silva), chegou ao segundo lugar no III Festival Universitário de Música Popular Brasileira, da TV Tupi, na interpretação do grupo MPB-4. Ainda nesse ano, a canção Diva (parceria com César Costa Filho) entrou para o V Festival Internacional da Canção.

Aldir Blanc e João Bosco

Em 1971, por intermédio de um amigo, Aldir Blanc conheceu o então estudante de engenharia civil João Bosco. Desse encontro, surgiu uma das mais importantes parcerias da história da música brasileira.

Como o violonista, cantor e compositor mineiro ainda morava em Ouro Preto, a primeira leva de parcerias entre os dois aconteceu por correspondência, como é o caso da canção Agnus Sei, lançada como lado B de um compacto do jornal O Pasquim, em 1972, que tinha como lado A a inédita Águas de Março, de Tom Jobim.

Ainda naquele ano, a dupla mostrou algumas músicas para Elis Regina, que incluiu a canção Bala com Bala no seu LP Elis.

A partir daí, a dupla tornou-se conhecida nacionalmente e a cantora tornou-se uma das principais intérpretes dos dois autores, tendo gravado 20 músicas da parceria, além de ter o privilégio de sempre escutar antes, com exclusividade, a produção de Aldir Blanc e João Bosco, para escolher o que queria lançar.

A carreira na medicina

Aqui cabe um parênteses: aluno exemplar em biologia, Aldir havia ingressado na Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro em 1965, de onde saiu em 1971 com especialização em Psiquiatria.

Fez residência dentro do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Hospital Gustavo Riedel, em Engenho de Dentro, mas como se negava constantemente à rotina de eletrochoques em pacientes, saiu de lá após um ano para abrir seu próprio consultório, no centro do Rio. 

Os sucessos

Assim foi até 1973, época em que ele e João Bosco passaram a ser gravados constantemente por Elis, e Aldir decidiu dedicar-se exclusivamente à carreira de letrista.

Um dos maiores sucessos da carreira de Elis Regina foi a canção O Bêbado e a Equilibrista, lançada no álbum Elis, Essa Mulher, de 1979, cuja história nós já contamos aqui.

A parceria Bosco e Blanc rendeu outras canções marcantes, como:

  • Dois pra Lá, Dois pra Cá;
  • De Frente pro Crime;
  • Kid Cavaquinho;
  • e O Mestre-Sala dos Mares (essa e as músicas anteriores de 1974);
  • O Ronco da Cuíca e Corsário (ambas de 1975);
  • Incompatibilidade de Gênios e Transversal do Tempo (ambas de 1976);
  • e Linha de Passe (dos dois com Paulo Emílio, de 1979).

No entanto, a partir da década de 1980, os amigos foram se afastando gradualmente, e a parceria foi dissolvida em 1986. Aldir Blanc e João Bosco voltaram a se aproximar em 2002, quando Bosco convidou o velho parceiro para uma gravação de O Bêbado e a Equilibrista, em seu songbook, e dali voltaram a se falar por telefone diariamente, além de às vezes comporem juntos. Ao todo, compuseram mais de 100 canções em parceria.

Autor de mais de 600 canções

Em 50 anos de carreira, Aldir Blanc é autor de mais de 600 canções e gravou, como cantor, dois álbuns de estúdio: o primeiro deles em 1984, Aldir Blanc e Maurício Tapajós, e o segundo em 2005, Vida Noturna, em que interpreta 12 faixas de sua autoria.

Outras parcerias de sucesso do letrista são com artistas como:

  • Moacyr Luz (mais de 60 parcerias, entre elas Coração do Agreste, de 1989);
  • Guinga (mais de 80 parcerias, entre elas Catavento e Girassol, de 1993);
  • Cleberson Horsth (A Viagem, de 1994);
  • e Cristóvão Barros (mais de 30 parcerias, entre elas Resposta ao Tempo, de 1998). 

Apaixonado por futebol, Blanc ainda compôs Coração Verde e Amarelo (em parceria com Tavito Carvalho), tema da Rede Globo para a Copa do Mundo FIFA de 1994.

Lei Aldir Blanc

Paralelamente a sua carreira como letrista, Aldir Blanc escrevia crônicas inspiradas na sua vida nos subúrbios cariocas para os jornais Última Hora, Tribuna da Imprensa e a revista Homem, até fixar-se em O Pasquim, em 1975. É autor de mais de 10 livros.

Um dos últimos trabalhos do artista foi compor, em parceria com Carlos Lyra, a trilha do musical Era no Tempo do Rei, baseado no romance de Ruy Castro.

Em 2020, depois da morte do letrista, a Lei Federal nº 14.017/2020, ficou conhecida como Lei Aldir Blanc (LAB), e estabeleceu uma série de medidas emergências para o setor cultural e criativo, fortemente impactado pela pandemia do Coronavírus (Covid-19).

Saudando Grandes Compositores da MPB

Entre os inúmeros sucessos compostos por Aldir Blanc, escolhemos contar a história de dois de seus maiores clássicos: Dois Pra Lá, Dois Pra Cá e O Mestre Sala dos Mares, ambas em parceria com João Bosco.

A história da música “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá”, de João Bosco e Aldir Blanc

Nas décadas de 1940 e 1950, o gênero estrangeiro que dominava as rádios brasileiras era o bolero, com influência direta sobre o samba-canção. O ritmo cubano, que mescla raízes espanholas com influências locais de vários países hispano-americanos, tornou-se também bastante conhecido como canção romântica mexicana.

Foi para homenagear o bolero, que João Bosco e Aldir Blanc compuseram Dois Pra Lá, Dois Pra Cá, canção lançada por Elis Regina em seu álbum Elis, de 1974, e depois regravada por nomes como Emílio Santiago, Nana Caymmi, Cauby Peixoto e o próprio João Bosco.

Em Dois Pra Lá, Dois Pra Cá, o eu-lírico, tímido, “sentindo um frio na alma”, convida alguém para uma dança. Parece que ele não sabe dançar bolero, mas o parceiro de dança o acalma: “são dois pra lá, dois pra cá”. 

O bolero

A partir de então, a música passa a ser sinestésica, ou seja, faz uma série de comparações ou associações do bolero com os sentimentos de quem o dança, tornando-se o próprio bolero um condutor dos outros sentidos:

O coração do dançarino apaixonado bate de forma descompassada, ao contrário do bongô e das maracas que conduzem a música; a cabeça roda mais do que os casais dançando em volta, guiada pela vertigem das notas de gardênia do perfume de seu par.

A sensualidade e a paixão estão sempre esbarrando – propositalmente – na linha tênue de algo de cafona ou piegas que existe também em uma cena como essa: na música, no perfume, nas costas macias, na mão no pescoço, na embriaguez de Whisky com Guaraná, no “dois pra lá, dois pra cá”. 

Ou na “ponta de um torturante band-aid no calcanhar” (genialidade na letra de Aldir Blanc) protegendo do atrito do calçado gasto, juntamente com a imagem do “falso brilhante” e os “brincos iguais ao colar”.

Uma letra difícil de escrever

Mas, com habilidade única, Blanc também consegue levar para a letra, a elegância de um universo pautado pelas paixões arrebatadoras. Imagine você, que o letrista contava que essa foi uma das músicas mais difíceis de escrever, mas que – quando veio – veio toda de uma vez depois de uma “esbórnia”, em um táxi, de madrugada:

“Eu fico escutando, escutando, escutando [a música], não pego lápis, nem papel. Escuto, e uma hora a letra começa a vir … Um dia, voltando da casa do Mello [Menezes, artista plástico muito amigo de Aldir], depois de uma noite de bebedeira, tô num táxi, e veio: ‘Sentindo frio em minha alma, te convidei pra dançar’.

Aí, abre bolsa e não tem papel, não tem lápis, entrei no cafofo da Maracanã [local onde morava na época] igual a um louco, anotei aquilo tudo, fui desesperado ouvir e tava em cima [exatamente da música composta por Bosco], do começo à última palavra. Dei aquela respirada, devo ter tomado uma vodka.”, conta Aldir.

A história da música “O Mestre Sala dos Mares”, de João Bosco e Aldir Blanc

João Cândido Felisberto, conhecido como “O Almirante Negro”, foi um militar da Marinha Brasileira que, em 1910, liderou a Revolta da Chibata, movimento que se rebelou contra os cruéis castigos, originários da época da escravidão, que continuavam a ser aplicados contra os marujos negros, mesmo após a suposta “abolição”.

Cansados de terem os seus corpos retalhados pela chibata, os marinheiros se revoltaram, liderados por João Cândido. Expulso, discriminado e perseguido pela Marinha, o herói que ficou na memória das “lutas inglórias” do povo brasileiro, morreu aos 89 anos, vítima de câncer, pobre e esquecido, no município de São João de Meriti, no Rio, onde se recolheu. 

Para saudar sua memória, João Bosco e Aldir Blanc compuseram, em 1975, o samba O Mestre-Sala dos Mares

O Almirante Negro

A canção foi barrada algumas vezes pela censura da ditadura militar, até que os autores descobriram que se mudassem o título – que antes seria O Navegante Negro ou O Almirante Negro – para algo mais “pomposo” e que não mostrasse de quem estavam realmente falando: O Mestre Sala dos Mares – a música passaria pelos censores com tranquilidade.

Na letra, os autores também tiveram que mudar o trecho: “Jorravam das costas dos negros entre cantos e chibatas” para “Jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas”.

Aldir Blanc declarou certa vez em entrevista:

“Vivemos na censura um momento dramático, onde eu me deparei, pela primeira vez, com o racismo oficial do regime militar”. 

A referência à cachaça também não tem nada de gratuita neste samba: a revolta dos marinheiros contra os castigos físicos vinha sendo arquitetada há muito tempo, mas foi precipitada por causa de duas garrafas de cachaça: o marinheiro Marcelino Rodrigues, voltando de uma folga, tentou embarcar no navio Minas Gerais, ancorado na Guanabara, com duas garrafas de cachaça.  

Flagrado, ele reagiu, mas foi preso a uma argola de ferro e recebeu uma pena severa: 250 chibatadas. O castigo foi aplicado no convés, na frente de todos, para “servir de exemplo para que aquele comportamento não se repetisse”.

As chibatadas não foram interrompidas nem pelo desmaio do marinheiro. O fato fez com que os marujos, liderados por João Cândido, precipitassem o motim. João também tinha sido punido, cinco anos antes, com redução de seu pagamento, pela mesma falta de Marcelino: levar cachaça para bordo.

A canção foi lançada no mesmo álbum Elis, de 1974, e depois regravada por nomes como Emílio Santiago, Quarteto em Cy e o próprio João Bosco.

​​Gostou de saber mais sobre as histórias de grandes canções da nossa música popular brasileira? Continue acompanhando a nossa série Saudando Grandes Compositores da MPB. Hoje, homenageamos o aniversariante Aldir Blanc.

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