Hoje é dia de falar de Bezerra da Silva! O Arquivo Novabrasil é um programa original, que promove a vida e a obra de grandes nomes da música popular brasileira. Artistas que fazem da nossa música um dos nossos maiores legados e pelo que queremos ser lembrados e reverenciados como brasileiros.
Toda quarta-feira, às 12h, um novo episódio do Arquivo Novabrasil vai ao ar em vídeo, nos nossos canais do Youtube e Spotify.
A primeira temporada especial do Arquivo Novabrasil traz a biografia de artistas que ajudaram a construir a história do samba no Brasil. E hoje, vamos conhecer a história dele: Bezerra da Silva!
O cantor, compositor e instrumentista pernambucano Bezerra da Silva foi um dos principais expoentes do samba.
Nascido José Bezerra da Silva – no Recife, em 1927 – ele veio de uma família muito pobre e viveu muitos anos à margem da sociedade, passando por diversas dificuldades, até lançar o seu primeiro disco, com mais de 45 anos de idade.

O pai de Bezerra da Silva abandonou a mãe ainda grávida e – aos 15 anos, depois de ser expulso da Marinha Mercante – o menino viajou de Recife para o Rio de Janeiro em um navio que carregava açúcar, somente com a roupa do corpo, para procurar o pai e fugir da pobreza.
Nesta época – aliás, desde criança – ele já cantava coco, tocava zabumba e trompete, mas – assim que chegou no Rio – passou a trabalhar na construção civil e como pintor de paredes e a morar na obra em que trabalhava, até se mudar para um barraco no Morro do Cantagalo.
Bezerra – que começou a se desenvolver como músico, a partir do coco do paraibano Jackson do Pandeiro – logo passou a frequentar o samba do morro e ingressou na bateria do bloco carnavalesco Unidos do Cantagalo, tocando tamborim.

Boêmio – um dos últimos sambistas ditos “malandros” – Bezerra da Silva foi detido pela polícia mais de 20 vezes – sem nunca ter cometido nenhum crime, apenas para “averiguação”, como alegava a polícia).
Ele ficou um tempo desempregado e chegou a morar por sete anos nas ruas do Rio de Janeiro e até a tentar o suicídio, até ser acolhido por um terreiro de umbanda, onde descobriu sua mediunidade e entendeu que o seu destino era a música.
Como ele próprio explicava, sua ligação com o mundo musical se deu por causa do “medo da fome”. Bezerra dizia que a única saída que tinha era “lutar por dias melhores”, pois “tinha dias que trabalhava e não comia”.

Em 1950, Bezerra da Silva conheceu Doca, também morador do Morro do Cantagalo, que o convidou para participar do “Programa da Rádio Clube do Brasil”, como ritmista: além do tamborim, Bezerra tocava surdo e instrumentos de percussão no geral.
Com o nome artístico de José Bezerra, ele teve suas primeiras composições – “Acorrentado” e “Leva Teu Gereré”, ambas em parceria com Jackson do Pandeiro – lançadas no primeiro álbum da carreira do amigo paraibano, em 1959.
Na primeira metade da década de 1960, Bezerra ingressou na orquestra da gravadora Copacabana Discos, que acompanhava vários artistas de renome, e também teve novas composições, assinadas em parceria com outros músicos, gravadas por Jackson do Pandeiro.
Entre elas: “Meu Veneno” (parceria com Jackson do Pandeiro e Mergulhão), “Urubu Molhado” (com Rosil Cavalcanti), e “B-a-bá” (com Mamão e Ricardo Valente).
Em 1964, a cantora Marlene também gravou “Nunca Mais”, uma parceria de Bezerra com Norival Reis.
O pernambucano estudou violão clássico por oito anos e passou outros oito anos tocando na orquestra da Rede Globo, sendo um dos poucos partideiros que lia partituras.
Também atuou como ritmista em discos de outros sambistas, como Clementina de Jesus e Roberto Ribeiro.
No final da década de 60, ele mudou o nome artístico para Bezerra da Silva e, em 1969, gravou o seu primeiro compacto simples, com as músicas “Mana, Cadê Meu Boi” (parceria dele com Jorginho) e “Viola Testemunha” (parceria com Almir Delfino e Jorge Garcia).
Mas Bezerra da Silva só viria a gravar um disco próprio anos depois, em 1973, com o título de “Bezerra da Silva – O Rei do Coco” e que ganhou um Volume 2, em 1976, com destaque para a faixa-título e pra canção “Cara de Boi” (uma parceria com Dicró).

A partir da série de três volumes do disco “Partido Alto Nota 10” – em 1977, 79 e 80 – Bezerra da Silva começou a ganhar mais destaque e a encontrar o seu público. Alguns dos sucessos dos discos foram as canções “Malandro Não Vacila” (composição de Julinho) e “Pega Eu” (de Criolo Doido).
Entre 1981 e 1993, Bezerra da Silva gravou um álbum por ano pela gravadora RCA.
Com uma visão aguçada dos problemas sociais, Bezerra iniciou uma vertente musical voltada para questões que a sociedade da época fingia não ver.
Cantava de forma magistral e sem medo contra as injustiças sociais, sobre o abismo social das favelas, dos morros e da população marginalizada, sempre com uma pitada de humor ácido e crítico, como nesta canção, “Vítimas da Sociedade”, parceria dele com Criolo Doido, que entrou pro álbum “Malandro Rifle”, de 1985.
Sua música contribuiu com a transformação da imagem das favelas: ali não tinha só bandido, em sua maioria era gente trabalhadora que merece respeito. Bezerra fazia questão de colocar nos seus discos, canções de compositores completamente desconhecidos para a época. Citava todos como grandes parceiros e grandes talentos, como forma de dar o seu recado: o morro também é lugar de gente talentosa.
Ele dizia: “Essas músicas que eu canto são de compositores que são serventes de pedreiro, camelôs, outro tá desempregado, outro limpa o carro da madame e a mulher é a cozinheira”.
Como cantava em “Partideiro sem nó na Garganta”: “Dizem que sou malandro, cantor de bandido e até revoltado. Somente porque canto a realidade de um povo faminto e marginalizado.”.
Muito antes do surgimento do rap e do funk no Brasil, os principais temas das canções que Bezerra da Silva interpretava – como verdadeiras crônicas – eram a vida do povo e os problemas da sociedade e das favelas, como a exploração e a opressão sofridas pelos trabalhadores, a malandragem e os ladrões à margem da lei, a questão do uso de drogas como a maconha e a condenação à caguetagem ou delação de companheiros.
Tratando da criminalidade, da violência e da vida precária de seus moradores, com linguagem irreverente e coloquial, as letras das canções interpretadas por Bezerra da Silva evidenciam estratégias de sobrevivência dos excluídos em uma sociedade injusta e racista, como, por exemplo em “Preconceito de Cor” (de G. Martins e Naval), do seu álbum “Justiça Social”, de 1987:
São frequentes também as referências às drogas, como no sucesso “A Semente” (de Walmir da Purificação, Tião Miranda, Roxinho e Felipão), presente no mesmo álbum e que teve um clipe gravado em 2003, com a participação de nomes como Seu Jorge, Marcelo Falcão e Dudu Nobre:
Por conta das temáticas tratadas em sua obra, Bezerra da Silva enfrentou mais problemas com as autoridades, a quem criticava sem medo. Essas mesmas autoridades consideravam letras como – por exemplo, a de “Malandragem dá um Tempo”, um de seus maiores sucessos, lançada no álbum “Alô Malandragem, Maloca o Flagrante”, de 1986, como um incentivo ao consumo de maconha:
O tema da delação de companheiros está presente – por exemplo na canção “Defunto Caguete”, presente no álbum “É Esse aí que é Homem”, de 1984.
E a sátira aos políticos vem de com tudo na música “Candidato Caô Caô”, do álbum “Violência gera Violência”, de 1988.
As experiências de Bezerra da Silva se identificam com os sambas que interpreta. Eles atualizam a figura do malandro, visto não de forma romantizada, como nos sambas dos anos 1930 e 1940, mas adequado à realidade das grandes cidades brasileiras, que se tornam mais violentas a partir dos anos 1970. O malandro cantado por Bezerra é aquele que sobrevive à guerra social dos morros sem se tornar bandido.

Outras canções em que o sambista cantou sobre a sua realidade e a de tantos outros brasileiros foram: “Overdose de Cocada” (1993); “Sequestraram Minha Sogra” (1991); “Bicho Feroz” (1985); “Pai Véio 171” (1983).
Em 1995, Bezerra da Silva gravou o álbum “Moreira da Silva, Bezerra da Silva e Dicró: Os Três Malandros In Concert”, uma paródia ao show dos três tenores, Luciano Pavarotti, Plácido Domingo e José Carreras.

Nessa época, o sambista se aproximou de São Paulo, e gravou sambas sobre a realidade das periferias paulistas, em canções como “Zona Leste Somos Nós (O Poeta Falou)” (de Marco Antônio) e “Os DPs de São Paulo” (de Capri e Silvio Modesto).
Essas músicas estão presentes no álbum “Malandro é Malandro e Mané é Mané”, de 2000 que trouxe na canção título um dos últimos e maiores sucessos na voz de Bezerra da Silva. A canção é uma composição de Neguinho da Beija-Flor, lançada por ele lá em 1980):
Outro sucesso presente neste mesmo álbum é “Tem Coca aí na Geladeira”, composição de sua esposa, Regina de Oliveira, que usava o nome artístico, Regina do Bezerra para assinar suas composições
Sobre essa música e sobre sua carreira, Bezerra da Silva dizia: “Cada um entende de um jeito. O importante é vender. Artista bom é aquele que vende, segundo o mercado. Veja: a frase ‘tem coca aí na geladeira’, é uma frase que todo mundo diz, mas como é o Bezerra que canta, então sujou!”
Tendo lançado seus discos em sistemas de som comunitários das favelas, portas de lojas, shows populares e programas de rádio AM, Bezerra da Silva obteve sucesso sem se subordinar à indústria fonográfica. Com ela, ele manteve uma relação de desconfiança, acusando as gravadoras de maquiar os números da venda de discos.
Em seus quase 50 anos de carreira, o cantor, compositor, violonista e percussionista pernambucano, passeou por gêneros musicais como o coco e o samba – em especial de partido-alto – e vendeu mais de três milhões de discos.





Mas, mesmo ganhando 11 discos de ouro, três de platina e um de platina duplo – dentro dos seus 28 álbuns lançados – Bezerra da Silva nunca foi reconhecido o bastante pelo mainstream. Um artista consagrado pelo povo, mas não pela mídia.
Apesar da sociedade tentar excluí-lo, sua ousadia rendeu frutos e influenciou o surgimento de uma nova geração de compositores, do samba ao hip-hop, que não se limitaram a fazer canções com letras falando das aventuras boêmias ou das desventuras do amor: as composições transformaram a visão das favelas, mostrando que o morro é lugar de gente bonita, honesta, feliz e de talento. E isso veio de Bezerra da Silva!
Consumido nos subúrbios e favelas cariocas, seus sambas foram apropriados e ressignificados pela classe média em meados dos anos 1990, quando dois de seus maiores sucessos foram regravados pelas bandas O Rappa (“Candidato caô caô”, em 1994, com a participação de Bezerra da Silva) e Barão Vermelho (“Malandragem dá um tempo”, em 1996).
No fim de sua vida, lá pelos anos 2000, Bezerra da Silva participou de shows e canções com outros artistas da nova geração que foram muito influenciados por sua obra, como Racionais MCs, Marcelo D2 e Rappin’ Hood.
Bezerra da Silva nos deixou órfãos de seu talento e genialidade em 2005, por conta de problemas pulmonares, aos 77 anos de idade.
Ainda no mesmo ano, teve lançado postumamente seu disco evangélico – religião à qual passou a se dedicar no final da vida – “Caminho de Luz”.
Antes disso, seu último álbum lançado tinha sido “Meu Bom Juiz”, em 2003, trazendo a participação de Marcelo D2 na faixa Garrafada do Norte (de Édson Show e Wilsinho Saravá / Roxinho ).

Ressaltando a crítica social presente no seu repertório, em 2010, D2 gravou um disco inteiro em homenagem ao sambista: “Marcelo D2 canta Bezerra da Silva”, resgatando sua obra e importância. Antes disso, D2 e Bezerra conviveram por cerca de sete anos e chegaram a fazer uma turnê juntos.
Em 2012, foi lançado o documentário “Onde a coruja dorme”, de Márcia Derraik e Simplício Neto, que destaca os compositores das músicas lançadas por Bezerra da Silva , muitos deles trabalhadores desconhecidos que abordavam em suas letras temas da realidade brasileira e que Bezerra fazia questão de incluir em seus discos.
Bezerra era a voz do morro, um legítimo “da Silva”. Um malandro que não tinha nada de mané! Viva, Bezerra da Silva!




