A canção “O Tempo Não Para” é uma das mais importantes da vasta obra de Cazuza e uma das mais importantes da história da música brasileira. Hoje, vamos entender o significado por trás desse clássico.
Composta em parceria com o cantor, compositor e baixista carioca Arnaldo Brandão, amigo de Cazuza, a canção dá nome ao quarto álbum solo do artista (depois dele sair de uma bem sucedida carreira como vocalista da banda Barão Vermelho) e ao penúltimo disco da sua discografia em vida (depois, ainda foi lançado mais um álbum póstumo, com as músicas que ficaram de fora do último disco de Cazuza, “Burguesia”, gravado quando o artista já estava bastante debilitado por causa da AIDS, se locomovendo com a ajuda de uma cadeira de rodas).
Contexto em que a canção nasceu
Cazuza ficou no Barão Vermelho – com quem lançou três álbuns – até meados de 1985. Depois disso, em carreira solo lançou dois álbuns “Cazuza” (1985) e “Só Se For a Dois” (1987), neste meio tempo, ele descobriu ser soropositivo.
O artista e sua família então começaram o tratamento para a doença, até comunicar ao público o que estava acontecendo com Cazuza, em 1989, quando nenhum artista ainda tinha assumido publicamente ser portador do vírus HIV.
Cazuza foi uma figura muito importante, ajudando assim a criar consciência em relação à doença e aos efeitos dela. Depois de sua morte, a mãe do artista – Lucinha Araújo – manteve por 30 anos a Sociedade Viva Cazuza, instituição que cuidou de mais de 300 crianças portadoras do vírus.
Lucinha conta que Cazuza sempre dizia queaté descobrir a doença, compunha mais sobre o que vivia, o seu cotidiano, os amores desvairados, as noitadas no Baixo Leblon. Depois de descobrir a AIDS, ele passou a cantar mais sobre a sociedade e os problemas do mundo: “Ele parou de olhar pro próprio umbigo e passou a cantar o país, o que ele fez muito bem.”, conta a mãe do artista.
Ainda em 1988, Cazuza lançou o álbum “Ideologia“, em que canta exatamente sobre este momento: sobre sua relação com a doença e com a morte, mas também sobre um momento de crise política e econômica do país, durante o governo de José Sarney, que assumiu a presidência em 1985, após o presidente eleito pelo povo nas primeiras eleições diretas pós-ditadura militar, Tancredo Neves, falecer antes mesmo de tomar posse.
O álbum – diferente dos dois primeiros – vem carregado de uma fúria completa e de uma tomada de consciência do mundo por Cazuza.
Foi quando estava na reta final para o lançamento da turnê do show “Ideologia“, que teve direção geral do grande Ney Matogrosso, que Cazuza mostrou a música “O Tempo Não Para” para Ney, dizendo se não sabia se ela deveria entrar no show, porque o repertório já estava fechado.
Ney Matogrosso não só disse que a música tinha que entrar no show, como ela deveria ser a música que fechava o show: “Nós temos que encerrar o show com isso, porque você encerrando o show com isso, tem uma porta aberta para o que você vier a falar daqui pra frente”, disse Ney para o amigo e grande amor.

Cazuza tinha recebido a música de Arnaldo Brandão pouco tempo antes, para colocar a letra. Assim que escutou a canção de Arnaldo, Cazuza disse que ela tinha algo de Bob Dylan e que ele ia fazer uma canção de protesto com aquela música. Assim que mandou a música de volta para Arnaldo Brandão, Cazuza partiu para Boston (EUA) para mais uma tentativa de tratamento para a doença, uma das oito vezes em que ele e a família fizeram isso.
Quando se apresentou na turnê de shows de “Ideologia”, Cazuza tinha voltado dessa tentativa de tratamento em Boston, já estava mais magro, mais debilitado.
Nilo Romero, músico, compositor e diretor musical da turnê “Ideologia“, relembra o quanto foi importante eles terem gravado aquele show, que – mais tarde, em 1989 – virou o álbum ao vivo “O Tempo Não Para”:
“Ninguém tinha certeza se Cazuza ia conseguir fazer show, mas ele tava ali: ‘Pô, vamos nos divertir, né?’. Ele, que era muito sacana, falava de uma forma que você não levava muito a sério, mas ele falava: ‘Vocês são necrófilos, vocês querem se aproveitar da minha morte, gravar o show… não quero que grave! Se esse show não tivesse sido gravado, o registro dessa música não ia existir.”.
O show arrebatou os brasileiros, tanto que – assim que a gravadora lançou o álbum “O Tempo Não Para Ao Vivo”, que é o registro desse show – a música de trabalho, “O Tempo Não Para” começou imediatamente a tocar na rádio, tornando-se um sucesso instantâneo.
Análises sobre “O Tempo Não Para”
O especial “Por Trás da Canção”, do Canal Bis, traz algumas pessoas que são peças chaves na história de “O Tempo Não Pára”, com suas análises sobre a música.
Nilo Romero conta: “Nós começamos a fazer um arranjo que tem musicalmente a urgência do tempo. Aí, nós começamos a pensar no timing do Pink Floyd (banda de rock britânica). Por isso que ela tem essa essa essa coisa sincopada no começo e no fim”.
E continua: “É claro que uma pessoa que sofre o que ele sofreu, quando você descobre que está com a doença, a primeira coisa que você fala é ‘Por que eu? Por que comigo?’. E o Cazuza, que era um cara transparente, colocou na letra também essa revolta: Em ‘Minha metralhadora cheia de mágoas’ ele assume isso. (…) E ele lutou até o fim.”.
Lucinha Araújo, mãe do artista, completa: “Ele que já sabia que estava doente, que era uma doença grave, uma doença mortal, então ele diz exatamente isso: a ‘metralhadora cheia de mágoas’ era aquilo que ele estava sentindo no momento.”.
Já a biógrafa de Cazuza, Regina Echeverria, analisa: “Você tem a impressão ouvindo a música, que é uma letra totalmente autobiográfica. (…) Quando o Cazuza se refere a ‘Que ainda estão rolando os dados’, a impressão que eu tenho é que ele queria dar um uma resposta, como se fosse um brado de esperança na vida dele e de algumas outras pessoas que pudessem estar nessa situação, como ele, doentes.”.
Análise da qual Lucinha compactua, porque ela conta que: “Até o final, ainda havia uma esperança de cura. Mas ao mesmo tempo, isso se misturava com o que o Brasil estava vivendo no momento, não era só sobre a doença. (…) ‘O Tempo Não Para’ representa um grito do Cazuza contra tudo o que estava acontecendo no Brasil e na vida dele, fazendo uma comparação.”.

O jornalista Carlos Eduardo Lima acredita que: “Talvez seja a letra mais forte que o Cazuza tenha feito, porque tem ali uma alternância de vulnerabilidade com indignação, tudo ao mesmo tempo, que faz a música ficar forte e a gente ficar meio pasmo: ‘Caramba, ele tá dizendo isso mesmo’. São coisas sérias que ele diz ali.”. E continua:
“Acho que o momento de maior raiva da carreira do Cazuza é “O Tempo Não Para”. É ele atirando no que passa na frente dele, por conta do que ele estava passando, por conta do que ele não vai mais passar. Ele está antevendo o que vai acontecer e ele ainda não está fraco o suficiente para se entregar.”
Já Ney Matogrosso analisa que aquele também era um momento de extrema corrupção no Brasil durante o governo Sarney. Então o trecho “Tua piscina tá cheia de ratos, tuas ideias não correspondem aos fatos” se refere a isso e que Cazuza tinha muita coragem de dizer isso assim: “‘Eu vejo um museu de grandes novidades’, é tipo: ‘Estão pensando que é novidade? (sobre o governo). Isso tudo já foi!”.
Regina Echeverria acha que a chave dessa letra está exatamente no “Museu de grandes novidades”. Ela entende que é Cazuza deixando para trás um estágio da vida dele e indo para um outro, que ele esperava que não fosse tão doloroso, mas que acabou sendo. “A gente não tem controle sobre a vida, e é o que ele queria dizer: ‘Calma, nem eu tenho controle sobre a minha vida, eu não morri ainda’.”, reflete Regina.
Cazuza partiu em junho de 1990, aos 32 anos de idade.
Ney, que foi muito importante neste momento da vida do Cazuza, ainda traz uma fala muito bonita sobre o que ele estava vivendo ali: “Ele não estava derrotado. Mesmo sabendo que ele ia morrer, ele não estava derrotado.”.
Para encerrar, o parceiro de Cazuza nesta composição, Arnaldo Brandão, comenta a letra do amigo: “É um poema fortíssimo e Cazuza foi muito profético nesse poema. Acho a letra uma obra prima do início ao final: cada estrofe é um pedaço de uma pessoa, que fala de si e fala do mundo ao redor. (…) O fato dele continuar escrevendo canções e cantando ajudou ele a viver mais tempo. Acho que a poesia ajudou Cazuza a ter uma sobrevida na loucura da vida dele pessoal.”.




