Hoje, 19 de abril, é celebrado o Dia Nacional dos Povos Indígenas. Nesta matéria, entenda a importância da data e conheça Brisa Flow e Kaê Guajajara, duas artistas indígenas que estão entre as mais importantes vozes da nossa música atual.
Dia Nacional dos Povos Indígenas
Nesta mesma data, em 1943, o então presidente da república, Getúlio Vargas, instituiu o então chamado Dia do Índio. A criação da data se deu a partir de uma proposta feita por lideranças indígenas que participavam do Congresso Indigenista Interamericano, três anos antes, no México.
Em um primeiro momento, as lideranças indígenas não toparam participar do evento, por acreditarem que os homens brancos que lideravam o encontro não escutariam as suas pautas.
Mas, depois, decidiram participar para buscar representatividade na tomada de decisões e espaço para uma luta por respeito a seus direitos e sua identidade.
O intuito inicial da data era este: zelar pelos direitos dos povos indígenas e promover uma reflexão sobre a importância do seu valor cultural e da preservação de sua identidade.
Acontece que, ao longo dos anos, não foi bem isso que vimos acontecer. A data tornou-se um dia folclórico, preconceituoso e estereotipado.
E, em tempos de profundo desrespeito com os povos originários, sua identidade, diversidade, história e direitos – com ações como:
- o esvaziamento da Funai (Fundação Nacional do Índio);
- a defesa da não demarcação de terras indígenas;
- o interesse na super exploração de suas terras;
- e das constantes afirmações de que os povos indígenas são inferiores
É mais do que importante, é imprescindível, discutirmos cada vez mais este assunto e reforçarmos que o dia 19 de abril não deve ser um dia de comemoração, mas sim um dia de consciência e reflexão.
Consciência e reflexão
Para isso, tomamos como base uma entrevista que o Doutor em Educação pela USP e indígena Daniel Munduruku – autor de mais de 50 livros para crianças, jovens e educadores – deu à BBC News, em abril de 2019.
Munduruku afirma que o que comemorava-se como Dia do Índio, era uma ficção. A começar pelo próprio termo “índio”, que foi dado aos povos originários que habitavam o território brasileiro quando ele foi invadido pelos portugueses, que dizimaram e escravizaram quem antes aqui vivia.
Quem deu o nome “índio” foram os próprios portugueses, que acharam que estavam chegando nas “Índias”. O termo remonta a preconceitos:
“trazendo a ideia de que o indígena é selvagem e um ser do passado, além de ser uma palavra genérica. (…) Esse generalismo esconde toda a diversidade, riqueza e humanidade dos povos indígenas”, reforça Munduruku.
Ele reafirma este fato, trazendo como exemplo as celebrações do “Dia do Índio” nas escolas brasileiras, em que o indígena era representado por uma “figura com duas pinturas no rosto e uma pena na cabeça, que mora em uma oca em forma de triângulo”, algo que deseduca as crianças.
“Há a percepção de que essa é uma figura que precisamos preservar, um ser do passado. Mas os indígenas não são seres do passado, são do presente.”, enfatiza. “A palavra índio está quase sempre ligada à preguiça, selvageria, atraso tecnológico, a uma visão de que o índio tem muita terra e não sabe o que fazer com ela. A ideia de que o índio acabou virando um empecilho para o desenvolvimento brasileiro.”.
“A palavra ‘indígena’ diz muito mais a nosso respeito do que a palavra ‘índio’. Indígena quer dizer originário, aquele que está ali antes dos outros”, defende Munduruku.
Daniel Munduruku pertence ao povo indígena de mesmo nome, hoje situado em regiões do Pará, Amazonas e Mato Grosso. É importante também reforçar a identidade dos diferentes povos indígenas.
“As pessoas acham que é só uma questão de ser politicamente correto. Mas, para quem lida com palavra, sabe a força que a palavra tem”, acrescenta. “É muito mais fácil usar uma palavra genérica do que efetivamente dar aos povos indígenas o peso da sua identidade. Identificar os diferentes povos indígenas significa garantir a eles direitos e políticas específicas, não políticas genéricas.”
Com base neste pensamento, desde de julho de 2022, o 19 de abril passou a chamar-se Dia dos Povos Indígenas. Um dia de reflexão, para que as pessoas entrem em contato com a diversidade dos povos indígenas e com seus direitos também. Para que a sua história jamais seja apagada.
Artistas indígenas na MPB
Por isso, no dia de hoje, trouxemos para vocês a história de duas artistas indígenas que estão fazendo história dentro da música popular brasileira: Brisa Flow e Kaê Guajajara.
Brisa Flow
Brisa de La Cordillera é uma cantora marrona ameríndia que mistura seu rap com cantos ancestrais, jazz, eletrônico e neo/soul. A artista transdisciplinar, mais conhecida como Brisa Flow, trabalha com linguagens musicais, atuando como cantora, produtora musical, performer e pesquisadora.
Brisa constrói arte a partir da vivência de seu corpo no mundo, criando caminhos que desprendem das amarras da colonialidade. Sua música é um um encontro com as energias da Terra. Desenvolve estéticas artísticas pela prática e pesquisa do canto que tece memórias e futuros originários.
Criada em Minas Gerais, Brisa Flow recebeu desde criança influências da música e da cultura dos povos andinos, por conta dos seus pais, artesãos chilenos.
Mc da cultura hip hop, começou sua carreira em batalhas de rap de Belo Horizonte e também é Arte educadora licenciada em Música, pesquisando e defendendo a música indígena contemporânea, a arte dos povos originários e o rap como ferramentas necessárias para combater o epistemicídio, que é o apagamento, a desvalorização ou a negação dos saberes ancestrais.
Discografia
Seu primeiro álbum, Newen, que significa “força” na língua nativa do povo ameríndio Mapuche, foi lançado em 2016 e foi muito bem recebido pelo público e pela crítica, entrando para listas dos melhores lançamentos daquele ano.
O segundo disco, Selvagem Como o Vento, de 2018, também esteve entre diversas listas de melhores discos do ano. Com destaque para a faixa Fique Viva, conta a história e as vivências de uma mulher indígena no contexto urbano, com uma mistura abarca hip hop, música brasileira, R&B e a sonoridade dos seus ancestrais, para falar sobre afetos, desafetos, desafios, necessidades e a reverberação de uma identidade nunca adormecida, mas agora ainda mais ativa e fortalecida.
Agora, em seu trabalho mais recente, Brisa Flow mistura o Rap com outras vertentes da música eletrônica e de raízes originárias, para falar de amor, coragem e autonomia em Janequeo, terceiro álbum de sua carreira, lançado em 2022.
A obra, dirigida pela própria cantora, foi inspirada na história do povo originário Mapuche e quer contar as histórias dos povos originários sem precisar falar sempre sobre dor.
Em 2020, Brisa também lançou uma nova experiência sonora, o EP Free Abya Yala, uma gravação de versos e sons improvisados em um quarteto de jazz, um jazzrap, e inspiradas nas suas pesquisas sobre freestyle e música originária.
Escute a entrevista que Brisa Flow deu à Lívia Nolla, no programa Vitrine, que te apresenta as novidades da música popular brasileira, trazendo mais diversidade e pluralidade para o seu rádio.
Conheça mais do trabalho de Brisa Flow.
Kaê Guajajara
A também multiartista Kaê Guajajara faz de sua obra uma oportunidade de mais pessoas indígenas se reconhecerem fora da identidade colonial, e também oferece aos brasileiros um caminho para a empatia com os povos originários, que denunciam continuamente o racismo e a exploração que sofrem, cantando sobre o que significa ser indígena no Brasil de 2022.
Cantora, compositora, atriz, arte-educadora e escritora, ela fala sobre quebrar as estruturas, criar as próprias estruturas, para que não seja mais invisibilizado como ser humano, independente de onde esteja, que todos tenham o seu direito à vida.
Nascida em Mirinzal, no Maranhão, em um território indígena não demarcado pela FUNAI que sofre constantes ataques de madeireiros – violência contra a natureza, e os corpos, principalmente das mulheres – Kaê Guajajara se mudou, ainda criança, para o complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, e lá passou a viver a experiência de ser uma indígena em contexto urbano.
Teve sua vida marcada por preconceitos e racismo, violências por conta de seus traços e origem. Mais que uma expressão artística, ela vê na música uma forma de resistir e se manifestar contra o silenciamento dos povos originários imposto pelos colonizadores e perpetuada até hoje pelos seus descendentes.
Na adolescência formou um grupo de rap, ao lado de dois amigos angolanos, chamado Crônicos. Nas músicas, contavam as violências que sofriam dentro da comunidade. Em seguida, vendo que os outros integrantes não tinham planos de expandir o trabalho para fora da Maré, iniciou carreira solo e as suas composições passaram a discutir diretamente a sua realidade indígena.
Pioneirismo
Lançou dois EPs em 2020 – Usaw e Wiramiri – antes de lançar seu primeiro álbum, Kauarahy Tadir, em 2021, muito bem recebido pela crítica, tendo sido nomeado melhor álbum do ano em diversas listas importantes da música brasileira.
Kwarahy Tazyr significa “Filha do Sol” em zeeg’ete, língua do povo indígena Guajajara, e o álbum apresenta uma nova perspectiva sobre a colonização a partir de composições originadas dos sonhos de Kaê – uma técnica ancestral de se receber os cantos.
Em 2022, o disco ganhou uma nova camada de compreensão com o lançamento em forma de álbum visual, com clipes para todas as músicas feitos por indígenas. Este é o primeiro projeto do tipo estrelado por uma artista indígena da história da música brasileira.
Kaê Guajajara lançará está lançando seu segundo álbum, Zahytata, agora em abril (também, como o primeiro, lançado pelo seu selo indígena AZURUHU) e será a primeira convidada do mês de maio do programa Vitrine, apresentado por Lívia Nolla, toda quinta-feira, às 22h, na Novabrasil.
A artista ainda é autora do livro: Descomplicando com Kaê Guajajara: o que você precisa saber sobre os povos originários e como ajudar na luta antirracista, lançado em 2020, disponível somente em formato digital.
Conheça mais do trabalho de Kaê Guajajara.