Patrimônio vivo cultural do Brasil, Gilberto Gil completa 83 anos de idade neste 26 de junho de 2025 e – para celebrar sua vida do músico baiano – trouxemos a história de um dos maiores sucessos de sua carreira: a música “Domingo no Parque”.
Com uma contribuição histórica e imensurável para a música e a cultura brasileira, a rica produção fonográfica de Gil – que esteve em plena atividade até os dias atuais e que faz sua última turnê da carreira “Tempo Rei” neste ano – soma, ao todo, mais de 70 álbuns e em torno de quatro milhões de cópias vendidas.
Conhecido mundialmente, Gilberto Gil venceu oito Grammys, entre Estadunidenses (2) e Latinos (6), e já realizou turnês pelas Américas, Ásia, África e Oceania. O cantor, compositor e multi-instrumentista já foi líder do Tropicalismo, Ministro da Cultura e hoje ocupa a cadeira número 20 da Academia Brasileira de Letras.
Versátil, Gil bebeu de várias fontes. Sua música tem influências de gêneros tradicionalmente brasileiros como o samba, o baião e o forró e também do rock, da música africana, do reggae, do funk, do jazz, entre outros.
Sua musicalidade, desde sempre, tomou formas rítmicas e melódicas muito pessoais e Gil sempre cantou sobre o regionalismo, as histórias e a realidade do nosso país e do povo brasileiro.
Hoje, vamos conhecer a história de uma de suas músicas mais importantes: “Domingo no Parque”.
História da música “Domingo no Parque”.
A canção “Domingo no Parque” foi composta por Gilberto Gil especialmente para apresentar no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, o famoso “Festival de 67”.
Pouco antes desse festival, Gil havia iniciado o Movimento Tropicalista, junto com outros grandes nomes da música popular brasileira como seu parceiro – e também líder do movimento – Caetano Veloso, além de Gal Costa, Torquato Neto, Rogério Duprat, Capinam, Tom Zé, e Os Mutantes.
O movimento de contracultura tinha o intuito romper barreiras, desconstruindo certos elementos rígidos da canção popular e trazendo novos elementos, para reconstruí-la de outra maneira, renovando tudo o que já havia sido feito na música brasileira até ali.
Transcendendo tudo o que já havia em termos de produção artística no Brasil, a Tropicália contemplava e internacionalizava a música, o cinema, as artes plásticas, o teatro e toda a arte brasileira.

O movimento surgiu sob a influência das correntes artísticas da vanguarda e da cultura pop nacional e estrangeira, como o rock e o concretismo, misturando manifestações tradicionais da cultura brasileira a inovações estéticas radicais, para criar algo inovador, que interviesse na cena de indústria cultural e de cultura de massas da época. E que representasse uma mudança de parâmetros, que atendesse também aos anseios da juventude da época.
Foi com esse intuito que Gilberto Gil começou a compôr “Domingo no Parque” para o Festival de 1967. A canção é um verdadeiro retrato das influências tropicalistas: Gil queria “montar algo diferente, partindo de elementos regionais, baianos, de usar um toque de berimbau, de roda de capoeira, como em uma cantiga folclórica”, segundo conta em seu site oficial. “A canção nasceu, portanto, da vontade de mimetizar o canto folk e de representar os arquétipos da música de capoeira com dados exclusivos, específicos: com um romance desse, essa história mexicana. Está tudo casado.”
Inspiração em Dorival Caymmi
A inspiração para o tema e a trama de “Domingo no Parque” veio depois de Gil – junto com Nana Caymmi, sua companheira na ocasião (Gil e Nana viveram juntos por dois anos) – visitar a casa do artista plástico Clóvis Graciano, amigo de Dorival Caymmi (pai de Nana, portanto sogro de Gil naquela época) e que tinha sido padrinho do primeiro casamento da cantora, com um médico venezuelano.

Os quadros de Clóvis, pendurados por sua casa, eram todos associados ao mesmo campo de interesse de Dorival Caymmi: um ambiente praiano, a Bahia… Da atmosfera da casa veio a inspiração de Gil para o local da canção: um fragmento daquelas paisagens. Um parque localizado na Boca do Rio – bairro de Salvador – e personagens que podiam viver naquelas imediações.
Esses personagens, que podiam ter saído de uma canção de Caymmi, viviam uma trama amorosa, um triângulo amoroso, que também poderia ter saído de uma canção “caymmiana”.
“Nós tínhamos vindo da casa do pintor Clóvis Graciano, onde eu tinha rememorado muito a Bahia e Caymmi. Eu estava impregnado disso, e por isso saiu ‘Domingo no Parque’: por causa de Caymmi, da filha dele, dos quadros na parede.”, conta Gil.
“A umas duas da manhã fomos para o hotel e eu fiquei com aquilo na cabeça: ‘Vou fazer uma música à la Caymmi, fazer de novo um Caymmi, Caymmi hoje!’. Peguei papel e violão e trabalhei a noite toda. Já era dia, quando eu terminei. De manhã, gravei.”
Gil também conta que “Domingo no Parque” foi feita no Hotel Danúbio, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, onde o baiano morou durante um ano, em São Paulo. Nana dormia ao seu lado, enquanto ele escrevia a canção. Eles dois já haviam composto juntos, para o mesmo festival, a canção “Bom Dia”, que apresentaram juntos, mas que não se classificou para as últimas eliminatórias.
Ainda sobre a composição de “Domingo no Parque”, Gil continua a descrever em seu site oficial: “Com a caracterização do capoeirista e do feirante como personagens, eu já tinha os elementos nítidos para começar a criação da história.”. Ele está falando sobre dois dos três personagens de sua trama: João – o capoeirista, que trabalha na construção e é mais ligado em uma confusão – e José – o feirante brincalhão, de bom coração.
E continua, contando como pensa a rima para suas canções: “Algumas pessoas pensam que rima é só ornamento, mas a rima descortina paisagens e universos incríveis; de repente, você se depara no lugar mais absurdo. Eu, que a procuro primeiro na cabeça, no alfabeto interno – mas também vou ao dicionário -, vejo três fatores simultâneos determinantes para a escolha da rima: além do som, o sentido e o necessário deslocamento.
Em ‘Domingo no Parque’, pra rimar com ‘sumiu’, eu cheguei à Boca do Rio (bairro de Salvador). E quando eu pensei na Boca do Rio, me veio um parque de diversões que eu tinha visto, não sei quantos anos antes, instalado lá, e que, desde então, identificava a Boca do Rio pra mim: desde aquele dia, a lembrança do lugar vinha sempre junto com a roda gigante que eu tinha visto lá. Aí eu quis usar o termo e anotei, lateralmente, no papel: ‘roda gigante’. Ela ia ter que vir pra história de alguma maneira, em instantes.”.
É aí que entra a terceira personagem desse triângulo amoroso “caymmiano”: Juliana.
“Era preciso também fazer o João e o José se encontrarem. O João não tinha ido ‘pra lá’, pra Ribeira; tinha ido ‘namorar’ (pra rimar com ‘lá’). Onde? Na Boca do Rio, pra onde o José, de outra parte da cidade, também foi. No parque vem a conformação dos caracteres psicológicos dos dois. Um, audacioso, aberto, expansivo. O outro, tímido, recuado.
Esse, louco por Juliana mas sem coragem de se declarar, vivia há tempos um amor platônico, idealizando uma oportunidade pra falar com ela. Naquele dia ele chega ao parque e a encontra com João, que estava ali pela primeira vez e não a conhecia, mas já tinha cantado Juliana e se divertia com ela na roda gigante. É a decepção total pro José, que não resiste.
Era só concluir. A roda gigante gira, e o sorvete, até então sorvete só, já é sorvete de morango pra poder ser vermelho, e a rosa, antes rosa só, é vermelha também, e o vermelho vai dando a sugestão de sangue – bem filme americano -, e, no corte, a faca e o corte mesmo. O súbito ímpeto, a súbita manifestação de uma potência no José: ele se revela forte, audaz, suficiente. A coragem que ele não teve para abordar Juliana, ele tem para matar.”
O espinho da rosa feriu Zé e o sorvete gelou seu coração. A música de Gil vai então crescendo cada vez mais, até o momento do assasinato de João de Juliana pelas mãos de José, quando a música tem uma pausa brusca e volta bem lenta e trágica, depois do assassinato.
“Amanhã não tem feira (ê, José). Não tem mais construção (ê, João). Não tem mais brincadeira (ê, José). Não tem mais confusão (ê, João)”.
Genial, como só Gilberto Gil consegue ser.

Quase que Gil não se apresentou no Festival
Música pronta, ela só precisava agora ser apresentada no festival!
Acontece que no dia de apresentar a canção nas eliminatórias, às seis da tarde aproximadamente, avisaram Paulinho Machado de Carvalho, diretor-geral da TV Record e organizador do festival, que Gilberto Gil não ia aparecer para defender “Domingo no Parque”.
Paulinho conta, em depoimento ao documentário “Uma Noite em 67″ – que fala exatamente sobre o clima vivido naquele festival, com depoimentos dos artistas e profissionais envolvidos – que saiu correndo e foi até o Hotel Danúbio, onde Gil se hospedava.
Nana Caymmi que abriu a porta e Gil se encontrava estirado na cama, tremendo de frio, debaixo dos cobertores, sem nenhuma condição de levantar e cantar dali a duas horas. Juntos, Paulinho e Nana ajudaram Gil a se banhar e se vestir, porque ele estava tão nervoso que estava paralisado.
O baiano conta, no mesmo documentário, que morria de medo de cantar em um festival, tinha pânico de provas, de ser submetido a um exame, principalmente tendo que ser aprovado já com uma reprovação prévia bastante ampla, com muita gente o condenando por estar fazendo aquilo.
“Aquilo” era exatamente ir contra a maré do que estava sendo feito na música popular brasileira até então. Existia uma onda de conservadorismo naquela época – principalmente em tempos duros de ditadura militar – que abominava essa transgressão que Gil, Caetano e toda a turma da Tropicália traziam em sua música e em suas atitudes.
“Era uma provação, eu só me recordo de uma agonia tão grande – até maior do que essa – no dia em que eu fui preso. Era esse tipo de dimensão. Eu sentia pavor.”.
Gil diz isso, porque ele sabia que sua composição era muito inovadora e – junto com “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso – mudaria o rumo da música popular brasileira para sempre.
“‘Domingo no Parque’ tinha o berimbau, um tema que é um triângulo amoroso, que acaba se dissolvendo com uma tragédia… coisas que eram surpreendentes para uma canção, principalmente naquela época. Ela trazia novos elementos, uma derivação às coisas que eram feitas na época.”, analisa Gil, em depoimento para a “Série MPB & Jazz 2012”. “E tudo aquilo se encaixava na moldura maior que era o próprio Tropicalismo”.

Já Caetano Veloso conta em depoimento para a mesma série: “No Festival de 1967, quando nós apresentamos os exemplos dessa necessidade/vontade de mudança, o Gil veio com um trabalho que era muito abrangente, porque já incluía a orquestra de Rogério Duprat e a banda mais de vanguarda do rock brasileiro de todos os tempos, que foram Os Mutantes e que hoje em dia são considerados vanguarda do rock no mundo inteiro.
Eu fiz também um negócio “Alegria, Alegria”, tocando com uma banda argentina de rock chamada Beat Boys. Eu entendia que era uma virada importante e radical, sabia que era uma coisa que causaria um certo escândalo e que ao mesmo tempo também poderia realmente mudar a feição da música popular no Brasil. Eu sabia na mente, mas não tinha a sensação de uma espécie de perigo. A minha emoção não captava o tamanho do estrago. E o Gil sim, tanto que ele ficou com medo. No dia de apresentar ‘Domingo no Parque’ pela pela primeira vez ele teve uma gústia e quase não foi, porque ele estava sentindo o tamanho do negócio.
Tanto “Domingo no Parque” quanto “Alegria, Alegria” tinham os mesmos elementos de vanguarda, o rompimento com as tradições, a presença da guitarra elétrica, a mistura de influências, a cara do Tropicalismo… e já sofriam críticas e censura antes mesmo de serem apresentadas.

“Domingo no Parque” mudou para sempre os rumos da música brasileira
No fim, “Domingo no Parque” foi aclamadíssima e classificou-se em segundo lugar: logo atrás da vencedora “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam, e logo à frente de “Alegria, Alegria”, também aclamadíssima.
“Domingo no Parque” tornou-se uma das mais importantes canções da carreira de Gilberto Gil e um divisor de águas para a música brasileira, entrou para o segundo álbum de estúdio do baiano, lançado logo em seguida, em 1968.
A partir desse momento, o Tropicalismo chegou ao seu auge e invadiu de vez a cena cultural brasileira, até os seus líderes – Caetano e Gil – passarem a ser amplamente censurados e perseguidos pela ditadura militar brasileira, o que chegou ao ápice com o cerceamento das liberdades democráticas, de expressão e das criações libertárias, na instauração do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968.
Caetano e Gil – que haviam sido presos em novembro de 1968 – foram forçados a se exilar em Londres, na Inglaterra, até 1972, deixando Gal Costa com a incumbência – quase que também imposta – de manter acesa a chama do Tropicalismo. O resto, é história. Muita história.
Para você – que quer saber tudo sobre essas e outras histórias dos mais de 60 anos de carreira de Gilberto Gil, que se mesclam com a história do Brasil como um todo – nós temos o Acervo MPB Gilberto Gil, uma áudio-biografia exclusiva da Novabrasil, que narra detalhes sobre a vida e a obra desse gigante da nossa cultura. Vale a pena conferir!



