“Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180!” Você sabia que a música “Maria da Vila Matilde” – sucesso na voz de Elza Soares – foi composta por um homem?
Sim! O sambista, cantor, compositor e instrumentista paulistano Douglas Germano compôs essa canção histórica – que fala sobre a violência doméstica, uma realidade vivida por tantas e tantas mulheres espalhadas pelo Brasil e pelo mundo – para falar sobre algo que aconteceu com sua mãe.
Na infância – quando tinha entre 10 e 12 anos, sendo o mais velho de três irmãos – Douglas viu a mãe ser agredida constantemente dentro de casa por seu pai, e conta que o fato praticamente destruiu sua família:
“Sou filho de uma Maria. Eu vi essa Maria, minha mãe, apanhar em casa. Era garoto e podia fazer muito pouco além de sentir medo de meu pai e dó de minha mãe. No dia seguinte, não se falava nada. Minha mãe soluçava pela casa com hematomas e meu pai saía para trabalhar. Aquilo era como se fosse um segredo nosso. Segredo de família.”, contou o compositor em uma entrevista para a revista “Rolling Stone Brasil”, de 2015.
Em outra entrevista, ao site “Medium”, em 2016, ele falou mais sobre o assunto: “É uma situação capaz de destruir qualquer família. Complicar o desenvolvimento dos filhos, comprometer a autoestima, esfacelar a dignidade da mulher etc. É terrível. E é cultural. De todo o terror sofrido à época, o que me restou hoje, claramente na memória, é o silêncio. Aquele terror era escondido. Não se falava nada. Minha mãe ficava semanas sem sair de casa até que os hematomas sumissem. Eu e meus irmãos éramos proibidos de dizer qualquer coisa etc… Nós, os filhos, não sabíamos como lidar com aquilo, apenas obedecíamos.”.

“Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim”
Quando compôs a faixa, anos depois de passar por tudo isso, Douglas Germano enviou a música para Elza Soares, também vítima de violência doméstica e a primeira pessoa que ele viu falar abertamente sobre o assunto em um programa de televisão:
“Nessa época que as coisas aconteciam lá em casa, tinha um programa na TV Globo, chamado ‘TV Mulher’. Esse programa era apresentado pela Marília Gabriela e, um dia, ela estava recebendo a Elza Soares, que apontava os problemas que as mulheres sofrem com violência doméstica. Isso lá em 1982, 1981. E eu lá, com a minha cabecinha de garoto, passei a entender que aquilo estava errado. (…) E, ouvindo aquele papo, eu percebi que aquilo estava errado. Falei com a minha avó e as coisas começaram a se transformar, porque até então a minha família não sabia.”, conta o compositor – hoje com 57 anos – em uma entrevista para o Jornal do Commercio, em 2016.
Era 2015 e a cantora estava gravando ”Mulher do Fim do Mundo”, álbum que promoveu um renascimento artístico de Elza Soares (mais um entre tantos, escute o Acervo MPB Elza Soares para entender toda a biografia dessa gigante da nossa música), e Douglas Germano foi convidado a participar do álbum como compositor.
O disco traz uma mistura de gêneros musicais como samba, rock, rap e música eletrônica, em onze canções inéditas, compostas por um grupo de artistas independentes da cena cultural paulistana contemporânea, como – além de Douglas, seu grande parceiro Kiko Dinucci, Rômulo Fróes e Alice Coutinho.

“Maria da Vila Matilde” – que também foi incluída no segundo álbum de estúdio de Douglas Germano, “Golpe de Vista”, no mesmo ano de 2016 -tornou-se um símbolo da vida e da obra de Elza Soares, e também uma música de resistência e de reflexão para uma sociedade em que a cada 30 segundos uma mulher é vítima de algum tipo de violência e que três a cada dez brasileiras já sofreram violência doméstica (dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024), o que nos faz provar que a violência de gênero não é apenas um ato isolado, mas sim uma expressão de poder e controle que está profundamente enraizada nas estruturas patriarcais da sociedade.
Douglas Germano contou na entrevista de 2016, que “Maria da Vila Matilde” se popularizou como nenhuma outra música já feita por ele: “’’Damião’ e as músicas com o Metá Metá (banda paulistana das mais prestigiadas e representativas do recente cenário musical brasileiro, formada por Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França e que gravou diversas composições de Douglas) ficaram conhecidas, mas essa atingiu um outro patamar. Eu vejo fotos de pichação no Recife, em São Paulo, em Porto Alegre com frases da música. É sensacional, porque é uma contribuição efetiva que você dá”, reflete.
Ao mesmo tempo, ele pondera: “Eu acho pretensioso colocar sob responsabilidade da música uma transformação. Mas eu acho que é um grito que se soma a um problema que já existe há muito tempo. (…) Minha mãe jamais iria a uma delegacia pelo constrangimento que ela teria. É aquele preconceito que existe, a coisa de criminalizar a vítima. O ideal seria que essas instâncias que devem acolher as denúncias não se transformem em mais uma esfera de constrangimento”.
O título “Maria da Vila Matilde“
O título da música faz referência à “Lei Maria da Penha”, que foi implementada muitos anos depois das violências sofridas por Elza Soares e pela mãe de Douglas Germano, quando ainda não havia regulamentação para punir os agressores e dar assistência às vítimas de violência doméstica.
Sancionada no dia 07 de agosto de 2006, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei 11.340 foi criada com o objetivo de incentivar e mobilizar as ações em favor da defesa dos direitos da mulher, instituindo instrumentos jurídicos a fim de garantir proteção para as mulheres brasileiras vítimas de violência doméstica.
A lei carrega esse nome em homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que durante mais de 19 anos sofreu violência doméstica de seu ex-marido e, após dupla tentativa de feminicídio, tomou coragem para denunciá-lo, tornando-se o seu caso um marco na luta pelos direitos das mulheres no país.
Marco Antonio Heredias Viveros tentou matá-la por duas vezes: na primeira, com um tiro nas costas enquanto dormia, que a deixou paraplégica aos 38 anos, e, na segunda, eletrocutada.
A Lei Maria da Penha trata-se de uma grande conquista, resultado de uma extensa luta e mobilização popular das mulheres em busca de ter suas vidas protegidas e combater a impunidade, após muitos anos de negligência das autoridades brasileiras.
Hoje, ela é considerada a segunda melhor lei de proteção à mulher do mundo, ficando atrás somente da lei da Espanha e, dessa forma, é classificada como uma lei extremamente completa, que trouxe muitos avanços ao que tange ao combate à violência contra a mulher, definindo claramente o que é violência doméstica e familiar contra a mulher e tipificando essa violência como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, que podem ser praticadas juntas ou separadamente.
Saiba mais sobre a “Lei Maria da Penha”
Formado na bateria da escola de samba Nenê de Vila Matilde, Douglas e a família viviam no bairro da Vila Matilde, na capital paulistana (muito próximo do bairro da Penha, inclusive, embora o nome de Maria da Penha não tenha a ver com o bairro), e – por isso – o nome da música é “Maria da Vila Matilde”.
Lembrando que o “180” citado na música é a Central de Atendimento à Mulher, um serviço de utilidade pública essencial para o enfrentamento à violência contra as mulheres.
A interpretação de Elza Soares para “Maria da Vila Matilde” foi indicada ao Grammy Latino de 2016, na categoria “Melhor Canção de Língua Portuguesa”.



