Antes de o Brasil conhecer o poeta do povo, o cronista das favelas e o ícone do samba, Martinho da Vila vestia farda e respondia a ordens militares. Pouca gente sabe, mas o cantor, compositor e escritor — dono de uma das trajetórias mais respeitadas da música popular brasileira — foi militar do Exército antes de se dedicar integralmente à carreira artística. Essa passagem, embora pouco lembrada, teve papel importante em sua formação pessoal e no modo disciplinado e determinado com que construiu sua história no mundo do samba.
Nascido em 12 de fevereiro de 1938, em Duas Barras, interior do Rio de Janeiro, Martinho José Ferreira cresceu em uma família simples e foi criado em Vila Isabel, bairro que se tornaria não apenas seu lar, mas também sua marca artística. Na juventude, como tantos jovens brasileiros de sua época, buscou estabilidade e ingressou no Exército Brasileiro, onde permaneceu por alguns anos, chegando a servir como sargento.
Durante esse período, Martinho aprendeu lições que levaria para a vida: disciplina, comprometimento e respeito ao coletivo — valores que mais tarde aplicaria em sua trajetória musical e na convivência com as escolas de samba.
Apesar da rigidez da vida militar, a música já corria em suas veias. Martinho tocava em festas, participava de rodas de samba e compunha nas horas vagas. O samba era, para ele, mais do que lazer: era uma forma de expressão, uma necessidade vital. Aos poucos, o som dos tambores começou a falar mais alto do que o toque da corneta. Quando percebeu que a música o chamava de forma irresistível, Martinho deixou a farda e seguiu o caminho que o consagraria como um dos maiores artistas do país.

O talento que despontava nas rodas de samba de Vila Isabel logo chamou atenção. Em 1967, participou do histórico III Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record, com a canção Menina Moça, e, no ano seguinte, alcançou o sucesso nacional com Casa de Bamba. A partir daí, o nome Martinho da Vila passou a ser sinônimo de samba autêntico, poesia e identidade brasileira. Seu primeiro disco, lançado em 1969, tornou-se um marco e abriu caminho para uma carreira sólida, repleta de clássicos como Canta, Canta, Minha Gente, Disritmia, O Pequeno Burguês, Ex-Amor e Mulheres.
Ainda que tenha deixado a carreira militar, Martinho nunca renegou suas origens. Em entrevistas, costuma afirmar que o período no Exército lhe ensinou a ter persistência e método — características que o ajudaram a trilhar uma carreira longa, coerente e respeitada. “A disciplina que aprendi lá me ajudou a organizar minha vida como artista”, disse certa vez. Essa mistura de rigor e sensibilidade talvez explique por que Martinho sempre foi um sambista de postura firme, mas de alma leve.
Com mais de 50 anos de carreira, Martinho da Vila se tornou muito mais do que um cantor: é um símbolo da cultura afro-brasileira, da resistência e da elegância do samba. Sua trajetória mostra que, antes do brilho dos palcos, houve luta, trabalho e superação — e que a música, muitas vezes, nasce justamente desses encontros improváveis entre mundos opostos, como o quartel e a batucada.
Hoje, ao olhar para trás, a história de Martinho revela um percurso raro: o de um homem que trocou a rigidez das armas pela liberdade dos versos, sem nunca perder o senso de responsabilidade com o que faz e com o país que canta. Do quartel à Vila Isabel, Martinho da Vila provou que a verdadeira farda que veste é a da cultura brasileira — feita de poesia, samba e humanidade.

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