Gosto de coisas raras, mamãe – disse o pequeno de cinco anos.
Admiradora da sabedoria infantil, quis logo saber o que aqueles olhinhos estavam apreciando no momento. Algo certamente havia passado despercebido pela minha aceleração rotineira.
A raridade a que ele se referia era um boneco feioso de plástico, com a cabeça quadrada e vestido de algum herói que faço questão de desconhecer. Desses, que por algum motivo a gente aceita que venham dentro de chocolates.
Fué, fué, fué, fué… Meu vitral poético imaginário se estilhaçou no mesmo instante. Tanta coisa especial para se observar e… De repente, um clique: em vez de julgar o conceito de raridade de uma criança, talvez eu pudesse tomar emprestadas as suas lentes. Aquelas, da espontaneidade. Da presença. Da descobertas.
Conviver com crianças traz efeitos colaterais sérios para pessoas sensíveis. Cuidado.
Respirei fundo, soltando o ar pela boca, de-va-gar. Os raios de sol brincavam de esconde-esconde entre as árvores naquele fim de tarde alaranjado de outono. O céu era uma pintura. Cada nuvem que deslizava com o vento era arte em tempo real.
Os boletos estavam lá, ainda. As tarefas, todas por fazer. O IOF, fora do meu controle. A ansiedade climática bombando. Tudo igual.
O que havia mudado? As minhas lentes, apenas.
Quantas semanas automáticas já risquei do calendário sem consciência de sua raridade? Quantos “Como foi seu dia, filho?” perguntei pensando nos BOs a resolver, sem prestar atenção ao processo de reciclagem de papel que ele me explicava com tanto entusiasmo? Quantas vezes, por pressa, menti respondendo “Tudo bem” a pessoas que genuinamente queriam saber como eu estava?
A vida é tão rara…
Será que tenho estado disponível para contemplar a singularidade de cada instante?
Além do exercício de não-julgamento, estava também diante da oportunidade de ajudar meu filho a ampliar sua definição de “coisas raras”. Bonecos podem ser raros? Claro. Mas vamos falar sobre este pôr-do-sol? Sobre pezinhos quentes feito pães de padaria recém-saídos do forno? Sobre a alegria de aprender algo novo? Sobre a hora de dormir aconchegados, gratos pelas coisas que nos fizeram bem no dia que passou?
O que mais é raro? Cada banho que nos permitimos tomar com consciência, aceitando o prazer da água que escorre levando sujeiras e, com sorte, algumas tensões. Cada sorriso trocado com desconhecidos, pelo simples lembrete de que somos todos iguais. Cada gesto de bondade feito sem expectativa de retribuição. Cada “eu te amo” que resolvemos não economizar por vergonha, trauma ou falta de costume.
Talvez mais um dia esteja acabando sem que tenhamos dado conta de metade das nossas necessidades fisiológicas, quanto menos das multitarefas. Sabemos que a vida não pára. Mas, sim, este século acelerado tem nos pedido um pouco mais de calma. E nosso corpo, certamente, um pouco mais de alma.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde, o Brasil é o país com a maior taxa de pessoas ansiosas no mundo, afetando cerca de 9,3% da população — o que representa quase 20 milhões de brasileiros. Além disso, cerca de 5,8% sofrem de depressão, e os atendimentos por transtornos mentais no SUS aumentaram significativamente nos últimos anos.
Acima das nuvens está o sol. Mesmo agora, perto do inverno. Com ou sem tempestades. Mesmo quando tudo foge ao nosso controle, podemos escolher lentes que nos trarão presença e, quiçá, alguma esperança.
Não é sobre beleza, é sobre a singularidade do instante. E sobre a raridade. Da vida.
Posso te mostrar uma das minhas músicas preferidas, filho? – e aumento o volume do rádio enquanto silencio os ruídos da mente.
Minha alma canta:
Paciência
(de Carlos Eduardo Carneiro de Albuquerque Falcão / Oswaldo Lenine Macedo Pimentel)
Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede um pouco mais de alma
A vida não pára
Enquanto o tempo acelera e pede pressa
Eu me recuso, faço hora, vou na valsa
A vida é tão rara
Enquanto todo mundo espera a cura do mal
E a loucura finge que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência
O mundo vai girando cada vez mais veloz
A gente espera do mundo, e o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência
Será que é tempo que lhe falta pra perceber?
Será que temos esse tempo pra perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara, tão rara
Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma
Mesmo quando o corpo pede um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não pára
A vida não pára, não



