Existem discos que não apenas embalam a infância, mas moldam a forma como a gente passa a ouvir o mundo. Na minha, lá nos anos 1980, a trilha sonora tinha cheiro de vinil e voz de bicho: era A Arca de Noé subindo o volume da imaginação, e Os Saltimbancos me ensinando que o coletivo é sempre mais bonito do que o solo.
Hoje, aos 44 anos e mãe de um menino de 1 ano, volto a essas canções com um ouvido novo — o dele. Quando Bento escuta A Casa, de Vinicius de Moraes, e sorri sem entender ainda as metáforas, sinto que o poeta está ali, entre nossas risadas e o barulho do brinquedo caindo no chão. E percebo que a infância é feita disso mesmo: de um encantamento que a música ajuda a preservar.

Arca de Noé, projeto idealizado por Vinicius e lançado em 1980, reuniu um verdadeiro “zoológico” de talentos da MPB. Toquinho, Elis Regina, Chico Buarque, Ney Matogrosso, Marina Lima, Fafá de Belém — todos emprestaram suas vozes a um repertório que tratava a criança como alguém digno de poesia, e não de simplificação. Eram bichos que falavam de humanidade, e versos que brincavam sem subestimar a inteligência dos pequenos.
Já Os Saltimbancos, versão brasileira de Chico Buarque para o musical italiano Musicanti, foi uma lição precoce sobre liberdade e união. Aliás, que obra prima! O burro, o cachorro, a galinha e a gata, cada um com sua dor e sua força, ensinavam que juntos somos mais fortes — um conceito que, na inocência da infância, soava como história, mas hoje entendo como manifesto. Afinal, o melhor amigo do bicho, é o bicho. Fora que é impossível não lembrar de Nara Leão, com sua doçura firme, dando voz à revolução mansa dos animais.
Revisitar esses discos agora, com meu filho no colo, é quase um reencontro comigo mesma. São canções que atravessaram o tempo sem envelhecer, talvez porque falem do que nunca muda: o desejo de ser livre, de ser visto, de ser amado. O Brasil pode ter mudado, as infâncias também, mas há algo de eterno quando uma mãe e um filho dividem o mesmo refrão.
Porque se A Arca de Noé me ensinou a sonhar, Os Saltimbancos me ensinaram a lutar — e, entre o sonho e a luta, a vida toda cabe num vinil riscado e num sorriso de criança.



