Desde a Antiguidade, o mar é fonte inesgotável de metáforas para a vida. Imenso, misterioso e imprevisível, inspira sentimentos que vão da serenidade ao temor. Não à toa, tornou-se cenário privilegiado da poesia, onde as ondas se transformam em versos.
Na literatura em língua portuguesa, o oceano se faz presente na obra de Fernando Pessoa, que o relacionou à história de Portugal, a Cecília Meireles, que viu nele um espaço de memória e transcendência. Mesmo hoje, poetas contemporâneos seguem encontrando no mar um espelho de nossa própria existência.
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Versos que revelam diferentes olhares sobre o mar
- “Praia dos Ossos” – Lawrence Flores Pereira (2021)
“Que pés pisaram essas enseadas,
essas praias
e esses portos de ossos?
[…]
Todo homem deve voltar ao mar:
Eu me encaminho e te procuro.
Entre a terra e o mar.”
Poema inédito publicado na seção cultural do Estado da Arte (Estadão). Em versos densos, ele retrata uma manhã em Armação dos Búzios (RJ) marcada pela presença das dunas, da água e de seus mistérios.
As imagens do mar são simbólicas: “olheiras de prata marejada” e um “mar que já arrastou há muito… os corpos de seus dez mil filhos dizimados”.
O comentário literário destaca que a forma e o ritmo do poema “são o próprio mar, o generoso e o implacável”, que simboliza, tanto a beleza, quanto a força implacável do oceano.
- “Coral e Outros Poemas” – Sophia de Mello Breyner Andresen (2018).
“No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo‑marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.”
Antologia organizada por Eucanaã Ferraz reúne poemas clássicos da poeta portuguesa sobre o mar e a natureza. Em textos como “Fundo do Mar”, Sophia celebra o contato puro com o elemento marinho.
- “Mar Português” – Fernando Pessoa (1934)
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Um dos clássicos maiores da língua portuguesa, escrito pelo heterônimo Álvaro de Campos. Inicia-se com “Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal!”, relacionando o mar à história dos navegadores lusitanos. O poema tem tom épico e nostálgico.
- “Mar Absoluto” – Cecília Meireles (1945)
“O mar é só mar, desprovido de apegos,
matando-se e recuperando-se,
correndo como um touro azul por sua própria sombra,
e arremetendo com bravura contra ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
por si mesmo vencido. É o seu grande exercício.”
Poema título do livro lançado no fim da Segunda Guerra Mundial. Reflete a sensação de solidão e vastidão diante do mar. Em versos cheios de musicalidade, Cecília trata o oceano como espaço de memória e de existencialismo, buscando sentido frente à imensidão.
Nesse fragmento, Cecília transforma o mar em uma entidade autônoma, que se move, luta e renasce continuamente. A imagem do “touro azul” evidencia sua força bruta e indomável, enquanto a ideia de “matar-se e recuperar-se” traduz o ciclo eterno das ondas, metáfora da própria vida. O mar aqui é um personagem que se confronta consigo mesmo e exercita sua liberdade e sua solidão.
Esse olhar poético revela o fascínio da autora pela impermanência e pela metamorfose, temas centrais em sua obra. O oceano surge como espelho da existência humana, ao mesmo tempo grandioso e efêmero, impondo ao leitor a sensação de pequenez diante da vastidão natural.

- “Mar Bravo” – Manuel Bandeira (1927)
“Mar que ouvi sempre cantar murmúrios
Na doce queixa das elegias,
Como se fosses, nas tardes frias
De tons purpúreos,
A voz de minhas melancolias:
Com que delícia neste infortúnio,
Com que selvagem, profundo gozo,
Hoje te vejo bater raivoso,
Na maré-cheia de novilúvio,
Mar rumoroso!
Com que amargura mordes a areia,
Cuspindo a baba da acre salsugem,
No torvelinho de ondas que rugem
Na maré-cheia,
Mar de sargaços e de amuragem!
As minhas cóleras homicidas,
Meus velhos ódios de iconoclasta,
Quedam-se absortos diante da vasta,
Pérfida vaga que tudo arrasta,
Mar que intimidas!
Em tuas ondas precipitadas,
Onde flamejam lampejos ruivos,
Gemem sereias despedaçadas,
Em longos uivos
Multiplicados pelas quebradas.
Mar que arremetes, mas que não cansas,
Mar de blasfêmias e de vinganças,
Como te invejo! Dentro em meu peito
Eu trago um pântano insatisfeito
De corrompidas desesperanças!…”
Poema do livro Libertinagem (1927) de tom simbolista. Bandeira usa imagens melancólicas do mar e das águas para tratar de temas pessoais. Ele reconstitui a atmosfera marinha em ritmo calmo e reflexivo, onde o mar simboliza emoções e lembranças do passado.
Bandeira utiliza o mar como metáfora da inquietação humana. Os versos evocam a rebeldia das águas como reflexo das emoções do poeta, sempre atravessado por angústias e lembranças. O “mar bravo” é, ao mesmo tempo, força da natureza e força interior, traduzindo a sensação de vulnerabilidade diante da vida.
- “A canção do mar” – Mário Quintana (1976)
Esse embalo das ondas
Das ondas do mar
Não é um embalo
Para te ninar…
O mar é embalado
Pelos afogados!
O canto do vento
Do vento no mar
Não é um canto
Para te ninar…
São eles que tentam
Que tentam falar!
Tiveram um nome
Tiveram um corpo
Agora são vozes
Do fundo do mar…
Um dia viremos
Vestidos de algas
Os olhos mais verdes
Que as ondas amargas
Um dia viremos
Com barcos e remos
Um dia…
Dorme, filhinha…
São vozes, são vento, são nada…
Este trecho explora de forma arrebatadora a ideia do mar como guardião e mensageiro dos que se afogaram “embalado pelos afogados”. A melodia que costuma acalmar, aqui se torna voz dos desaparecidos, “vozes do fundo do mar”. É uma canção de ninar invertida: em vez de conforto, ela traz o espectro dos que partem e o futuro inevitável que os espera.
Neste poema, Quintana transforma o mar em um lar que ecoa a memória dos que se perderam nas águas. As ondas não embalam para dormir, mas representam os que partiram, uma espécie de berço fúnebre. O “canto do vento” também não conforta: ele é voz dos mortos, tentando falar de um outro mundo.
A promessa de que “um dia viremos vestidos de algas” cria uma imagem poética de transformação e retorno, onde os vivos e os mortos se fundem no ciclo marítimo. O final, com “Dorme, filhinha… São vozes, são vento, são nada…”, resume a tensão entre o consolo e o vazio.
- “Planta de Maceió” – Lêdo Ivo (1992).
O vento do mar rói as casas e os homens.
Do nascimento à morte, os que moram aqui
andam sempre cobertos por leve mortalha
de mormaço e salsugem. Os dentes do mar
mordem, dia e noite, os que não procuram
esconder-se no ventre dos navios
e se deixam sugar por um sol de areia.
Penetrada nas pedras, a maresia
cresta o pêlo dos ratos perdulários
que, nos esgotos, ouvem o vômito escuro
do oceano esvaído em bolsões de mangue
e sonham os celeiros dos porões dos cargueiros.
Foi aqui que nasci, onde a luz do farol
cega a noite dos homens e desbota as corujas.
A ventania lambe as dragas podres,
entra pelas persianas das casas sufocadas
e escalavra as dunas mortuárias
onde os beiços dos mortos bebem o mar.
Mesmo os que se amam nesta terra de ódios
são sempre separados pela brisa
que semeia a insônia nas lacraias
e adultera a fretagem dos navios.
Este é o meu lugar, entranhado em meu sangue
como a lama no fundo da noite lacustre.
E por mais que me afaste, estarei sempre aqui
e serei este vento e a luz do farol,
e minha morte vive na cioba encurralada.
Lêdo Ivo personifica o mar como uma presença intensa e consumidora. O “vento do mar” que rói as casas e os homens transforma o ambiente, uma influência constante que começa desde o nascimento e segue até a morte. A “leve mortalha de mormaço e salsugem” sugere um manto quase invisível, mas significativo, que envolve toda a existência dos habitantes daquela terra costeira.
Os versos erguem o mar como protagonista: seus “dentes” que mordem dia e noite simbolizam sua persistência e força inexorável, afetando tanto espaços quanto corpos humanos. A imagem dos que “não procuram esconder-se no ventre dos navios” adquire sentido simbólico: o navio representa, neste caso, não um meio de escapar, mas um lugar de refúgio, uma forma de se preservar da ação inevitável do oceano.
- “Caprichos e Relaxos” – Paulo Leminski (1983)
“Aqui
nesta pedra
alguém sentou
olhando o mar
o mar
não parou
pra ser olhado
foi mar
pra tudo quanto é lado”
Este poema curto traz uma imagem poética poderosa: alguém contempla o mar, mas o mar não se altera para ser visto; continua livre e expansivo, “pra tudo quanto é lado”. A cena coloca o observador como elemento estático, enquanto o mar se impõe com sua amplitude, simbolizando a indomabilidade da natureza diante do olhar humano.

Um oceano de sentidos na poesia em língua portuguesa
Em cada poema selecionado, o oceano é espelho da alma humana e também alerta sobre nosso papel no planeta. A beleza lírica das águas, capturada por esses autores, convive com uma urgência contemporânea: segundo a ciência, o mar é essencial para equilibrar o clima globalclimate.mit.edu, mas sofre com a ação humana (como a poluição plástica)brasil.oceana.org. A poesia ajuda a humanizar esses números, fazendo-nos sentir a grandeza e a fragilidade do oceano. Ao ler esses versos sobre o mar, somos convidados não apenas a mergulhar nas emoções que eles evocam, mas também a refletir na responsabilidade de proteger essa fonte de vida que nos inspira.



