“Quem vai me chamar de amor?” não é apenas uma pergunta romântica: é um retrato sociopolítico. É um eco profundo do que significa ser mulher negra em uma sociedade estruturada pelo racismo, pelo machismo e por hierarquias afetivas que definem quem é digno de amar e ser amado. No Brasil, onde o mito da democracia racial ainda é usado para silenciar desigualdades, a solidão afetiva das mulheres negras permanece como uma ferida aberta — e a música “Caju”, de Liniker, transforma essa ferida em arte, poesia e denúncia.

A canção, lançada em um dos momentos mais sensíveis da carreira da artista, aborda a falta de reconhecimento afetivo de corpos negros com rara delicadeza. Liniker, com sua voz quente e interpretação visceral, canta aquilo que tantas mulheres negras vivem em silêncio: o amor que nunca chega, o romance que não se concretiza, o toque que não acontece. A metáfora da “fruta madura que ninguém quer colher” sintetiza perfeitamente o paradoxo entre desejo e rejeição: as mulheres negras são frequentemente hiperssexualizadas, mas raramente valorizadas no campo emocional.
Pesquisas como as realizadas pela antropóloga Giovana Xavier, pela socióloga Ana Cláudia Lemos Pacheco e pela filósofa Djamila Ribeiro apontam que a solidão afetiva das mulheres negras não é individual, mas coletiva. Dados de aplicativos de relacionamento, estudos sobre casamentos inter-raciais e relatos de mulheres negras mostram padrões: homens negros e brancos tendem a priorizar mulheres brancas como parceiras afetivas, enquanto mulheres negras são vistas como “fortes demais”, “difíceis demais”, “independentes demais” ou “não dignas de cuidado”.
Liniker atravessa esse debate com poesia. Em “Caju”, ela reivindica não apenas o direito ao amor, mas o direito ao amor terno, cuidado, gentil, romântico — e não apenas ao desejo bruto, erotizado e desumanizado. Há uma elegância enorme na maneira como ela canta a vulnerabilidade, invertendo a lógica cruel que associa mulheres negras apenas à força e jamais à fragilidade.
A pergunta “quem vai me chamar de amor, de gostosa, de querida?” traduz uma demanda real por afeto, carinho e reconhecimento. Não se trata de carência, mas de humanidade. Trata-se do direito fundamental de ser notada, acolhida, desejada e, acima de tudo, amada. Essa música rompe com o discurso de que mulheres negras “não precisam de ninguém” — discurso que apenas reforça a solidão e nega o direito ao afeto que deveria ser universal.
Quando Liniker coloca o tema no centro de sua criação, ela também confronta a sociedade:
Por que mulheres negras são sempre as últimas a serem escolhidas?
Por que seus corpos são tão consumidos e tão pouco amados?
Por que ainda naturalizamos um mundo onde mulheres negras cuidam de todos, mas ninguém cuida delas?
“Caju” é mais que música — é manifesto. É lembrete. É cura. É convite para repensar o modo como o Brasil constrói afetos atravessados pela desigualdade racial. Se a sociedade insiste em negar amor às mulheres negras, a responsabilidade é coletiva:
O que estamos fazendo para mudar essa realidade?
Liniker fez sua parte — ela cantou. Agora cabe a nós ouvir, refletir e transformar.


