Eleição na Turquia coloca era Erdogan em xeque, sob olhos atentos de Rússia e Otan

MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – As eleições na Turquia não interessam apenas às 85 milhões de pessoas que há 20 anos são governadas por Recep Tayyip Erdogan. Os olhos dos vizinhos do Oriente Médio e da Europa, dos aliados da Otan e da Rússia de Vladimir Putin estarão voltados para o resultado do primeiro turno neste domingo (14).

Internamente, estão em jogo os rumos de um governo que foi se tornando mais autocrático e autoritário. Fora das fronteiras, pesam a relação com o Ocidente e o protagonismo tanto regional quanto de mediação no contexto da Guerra da Ucrânia. Por tudo isso, o pleito é considerado um dos mais importantes do ano.

Erdogan, 69, nunca antes esteve tão perto de perder. No comando desde 2003, tornou-se premiê com a chegada ao poder do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), nacionalista conservador, e, em 2014, foi eleito presidente depois de mudar regras eleitorais e a Constituição. Em 2018, foi reeleito no primeiro turno. Líder carismático, viu enfraquecer sua popularidade recentemente, devido à grave crise econômica que afeta o país e a causas e efeitos do terremoto que matou mais de 50 mil pessoas em fevereiro.

Seis legendas formaram uma frente de oposição sob a batuta de Kemal Kilicdaroglu, 74, chefe do Partido Republicano Popular (CHP), de centro-esquerda. Funcionário público aposentado e parlamentar por duas décadas, transformou a falta de carisma em trunfo para conciliar divergências e manter a chapa unida.

Segundo pesquisa Metropoll realizada entre os dias 9 e 10 de maio, a oposição tem 46% das intenções de voto, com leve vantagem sobre Erdogan e seus 44%. Se nenhum candidato superar os 50%, o segundo turno ocorre em 28 de maio. Nesse caso, Kilicdaroglu poderia vencer com 47,8%, indica o levantamento. No domingo, os eleitores votarão também para preencher as 600 cadeiras do Parlamento.

Na reta final, quando a campanha envolveu agressões -um ônibus da oposição foi apedrejado- e circulação de conteúdo mentiroso, com Kilicdaroglu acusando russos de estarem por trás de fake news conspiratórias, outro elemento pode interferir nas urnas. Em quarto lugar nas pesquisas, Muharrem Ince, de oposição, desistiu da corrida a três dias da eleição. Embora seja um nanico, com 1,2%, esses eleitores podem fazer diferença em uma disputa apertada.

Político mais influente no país desde que Mustafa Kemal Ataturk fundou a Turquia moderna há um século, Erdogan consolidou apoio popular com medidas voltadas para os mais pobres. O PIB per capita quase triplicou entre 2003 e 2013, quando começou a cair.

Erdogan segue a linha pró-islâmica do partido e, em 2013, derrubou o veto ao uso de véu no serviço público, possibilitando que mais mulheres religiosas pudessem trabalhar. O voto feminino é uma parcela considerável do eleitorado do atual presidente, mas há dúvidas de como o segmento vai se comportar diante da crise do custo de vida e de uma escalada ultraconservadora que inclui discursos acerca de uma visão tradicional de família, anti-LGBTQIA+ e, ainda, a saída da Turquia, há dois anos, da Convenção de Istambul, um tratado internacional contra a violência de gênero.

Em duas décadas, Erdogan concentrou poderes como presidente, eliminou a figura do primeiro-ministro, enfraqueceu a independência do Judiciário e do banco central, prendeu opositores e controlou a mídia por meio de intimidação e aliados no comando. A guinada autoritária se intensificou depois de uma tentativa frustrada de golpe, em 2016, orquestrado por parte das Forças Armadas, alegando defesa da democracia.

“Desde então, houve uma parábola descendente na democracia, uma erosão do Estado de Direito. As eleições vão determinar o caminho da Turquia nos próximos anos. Se Erdogan vencer, seria a consolidação de um sistema autocrático”, diz à Folha Valeria Talbot, pesquisadora-chefe de Oriente Médio e Norte da África do Instituto Italiano de Estudos Políticos Internacionais.

Com a vitória da oposição, espera-se, de acordo com promessas de campanha, que o sistema parlamentar seja restaurado, assim como a independência do banco central. A adoção de uma política econômica ortodoxa vem sendo anunciada como medida para baixar a inflação, que chegou a 85% no ano passado. “Seria uma mudança importante. E, como toda mudança, uma fase de incertezas”, afirma Talbot.

Algumas dessas incógnitas cercam o futuro papel da Turquia no cenário geopolítico. Um dos legados de Erdogan é ter posicionado o país como potência regional e ator relevante global, tirando proveito da posição estratégica no mapa.

Depois de diversas fases em que se alternaram maior e menor isolamento, a política externa tem como características a autonomia, a diversificação e a personificação em Erdogan. “Não é uma Turquia que olha somente para Europa e Estados Unidos, dentro da Otan. Mas um país que se projetou para Oriente Médio, Cáucaso, Ásia Central e África, guiada por precisos interesses geopolíticos e econômicos”, diz Talbot.

Se Erdogan continuar no poder, deve ser mantida a linha de normalização das relações diplomáticas com Emirados Árabes Unidos, Israel e Arábia Saudita. Canais de diálogo foram reabertos também com Egito e até com Síria, onde por anos o presidente turco atuou para derrubar o ditador Bashar al-Assad.

Se a oposição sair vitoriosa nas urnas, além da continuidade desse processo de distensão regional e da retomada de uma diplomacia por canais tradicionais, menos personalista, é dada como certa uma tentativa de reaproximação com Estados Unidos e União Europeia, onde as negociações para a adesão ao bloco estão congeladas. Embora a entrada seja vista como impraticável no médio prazo, em um momento em que o centro das atenções é a Ucrânia, a reabertura do diálogo seria um sinal positivo.

No contexto da Guerra da Ucrânia, surgem outros pontos de interrogação. De um lado, Kilicdaroglu já disse que aprovaria a entrada de novos membros na Otan, como a Suécia, vetada por Erdogan. Por outro, é considerado improvável que a Turquia, mesmo sob nova direção, alinhe-se ao Ocidente em relação às sanções impostas a Moscou depois da invasão.

“A Turquia não pode virar totalmente as costas para a Rússia, de quem tem certa dependência econômica. Na questão da guerra, penso que tentarão um jogo de equilíbrio, inclinando-se mais para a Europa”, avalia Asli Aydintasbas, pesquisadora do Brookings Institution. Foi o que sinalizou, na sexta (12), o candidato opositor. “É muito importante para nós, e para o mundo inteiro, se conseguirmos chegar a um acordo de paz. Mas devemos deixar claro que não achamos certo nenhum país ocupar outro”, disse Kilicdaroglu.

Com Erdogan como mediador, a Turquia ganhou prestígio internacional no ano passado ao garantir, com a ONU, um acordo que permitiu à Ucrânia exportar de forma segura seus grãos, evitando o agravamento de uma crise alimentar mundial. As negociações com Moscou para a safra deste ano estão em andamento. “Esse papel de mediação se deu por causa do bom relacionamento pessoal entre Erdogan e Putin”, pondera Talbot. “Sem sua figura, sem esse elemento pessoal, o que poderia acontecer?”.

MICHELE OLIVEIRA / Folhapress

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