Relembre o que foi a chacina da Candelária, que completa 30 anos

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Gritos romperam a madrugada, acordando alguns dos jovens que dormiam embaixo da marquise no entorno da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro. “Cadê o Come Gato? O Come Gato?”, repetiam as vozes, segundo os relatos. Logo em seguida, vieram os tiros.

Foi assim, segundo as investigações, que se deu a chacina da Candelária, episódio trágico da violência do país em que oito jovens, entre 11 e 19 anos, foram mortos a tiros em 23 de julho de 1993. O caso completa 30 anos neste domingo (23).

De acordo com a versão oficial dos investigadores, dois policiais militares e dois ex-PMs abriram fogo contra crianças e adolescentes que viviam nas ruas, nos arredores do ponto turístico da cidade. O ataque no local aconteceu entre as 22h e as 23h daquela sexta-feira e durou cerca de dez minutos. Para se chegar perto do que aconteceu, porém, passaram-se anos.

Só na manhã do sábado que a polícia descobriu que a chacina começou na região do Aterro do Flamengo, que na época não era bem iluminado e ficava ermo à noite. Foi lá que, antes de se dirigirem à igreja, os autores do massacre mataram dois jovens. Pensaram ainda que haviam matado, ali, uma terceira vítima, Wagner do Santos, na época com 21. Mesmo com quatro tiros, a maioria na nuca, o jovem sobreviveu e se tornou a testemunha chave para desvendar o caso.

De lá, o grupo seguiu até a igreja. Parou em frente a onde os garotos dormiam, no início da avenida Presidente Vargas, e gritou por Come Gato, como era conhecido Marcos Antônio Alves da Silva, 19, um dos jovens da Candelária. Ali, a tiros, mataram mais seis garotos.

Logo após a chacina da Candelária, o caso ganhou repercussão dentro e fora do Brasil. Era um crime bárbaro que aconteceu onde ficava, até então, o centro financeiro da segunda maior cidade do país.

As vítimas

O entorno da Candelária era um refúgio para cerca de 70 crianças e adolescentes que haviam fugido de problemas familiares, abusos e violência doméstica. A situação delas dificultou até mesmo a identificação das vítimas, já que muitos não tinham nem sequer documentos.

Até hoje, um dos oitos mortos não foi identificado e ficou apenas registrado como “Gambazinho”, seu apelido nas ruas. Ele tinha 17 anos. As demais vítimas eram Marco Antônio, Paulo Roberto de Oliveira, 11, Anderson de Oliveira Pereira, 13, Marcelo Cândido de Jesus, 14, Valdevino Miguel de Almeida, 14, Leandro Santos da Conceição, 17, e Paulo José da Silva, 18.

Na época, a artista plástica Yvone Bezerra de Mello fazia ações sociais com aqueles jovens e costumava dar fichas de telefone para que, caso acontecesse alguma coisa, eles ligassem para ela. Foi o que fizeram, e ativista chegou primeiro ao local após o crime.

“Juntei as crianças e pedi para que não mexessem nos mortos. Me aninhei com eles no chão e ficamos conversando. Fui acalmando eles e fiquei com eles, dormindo agarrados em mim, até de manhã”, conta.

Primeiros suspeitos

Nos primeiros meses da investigação, a Polícia Militar prendeu três agentes da corporação e um civil. Eram eles os soldados Marcus Vinícius Emmanuel Borges e Cláudio Luiz dos Santos, o tenente Marcelo Cortes e o serralheiro Jurandir Gomes. Os quatro haviam sido reconhecidos pelos sobreviventes da chacina. No entanto, os investigadores da época não conseguiam estabelecer uma conexão entre eles.

“Isso nos incomodava, porque para cometer uma chacina, precisa de uma motivação e as pessoas tinham que ter uma relação”, conta o promotor do caso, José Muños Piñeiro Filho, que atualmente é desembargador no Rio. “E os quatro nunca tinham trabalhado juntos, não se conheciam.”

Em 1996, às vésperas do julgamento, o promotor relata que foi procurado pelo ex-policial do Choque Nelson Oliveira dos Santos Cunha para confessar o crime e se entregar.

“O Cunha tinha se convertido e viu que um dos presos [Cláudio Luiz] também era evangélico. Ele sabia que o Cláudio não tinha participado da chacina e ficava carregando a culpa. Até uma hora que não aguentou e confessou”, conta o antropólogo Robson Rodrigues, coronel da reserva da PM e contemporâneo de Cunha no batalhão. O especialista fez uma série de entrevistas com o colega de farda no período em que ele ficou preso.

A motivação

Aos promotores do caso Cunha declarou que cometeu o crime com Emmanuel, que já estava preso, e outras duas pessoas: o policial Marco Aurélio Alcântara e o ex-PM Maurício da Conceição Filho, expulso da corporação por envolvimento com a contravenção. Os quatro eram vizinhos no Rio Comprido, também no centro do Rio. Cláudio Luiz, Cortes e Jurandir seriam inocentes.

O ex-agente do Choque disse que o que motivou o ataque foi uma discussão entre Emmanuel e os garotos da Candelária. O soldado tinha levado dois adolescentes que cheiravam cola de sapateiro para a delegacia. Mas, chegando lá, o delegado decidiu soltá-los com o argumento de que o produto não era considerado entorpecente.

Revoltado, Emmanuel precisou voltar à Candelária, onde fazia o patrulhamento de um ato de sindicalistas. Lá, os jovens teriam zombado do PM, iniciando uma discussão. Os principais envolvidos seriam Come Gato e Wagner.

Ainda segundo a versão, no momento decidiu deixar o local, uma pedra atirada pelos garotos quebrou a vidraça da viatura de Emmanuel. De acordo com Cunha, o PM o chamou com os demais assassinos para dar um “susto” nos jovens.

O grupo avistou Wagner andando pelo centro com outros dois garotos. Eles colocaram os três no carro e seguiram para a Candelária, mas acidentalmente, segundo Cunha, ele atirou em Wagner no meio do trajeto. Isso os teria levado a decidir matar os jovens no Aterro.

A condenação

Emmanuel e Alcântara acabaram confessando a participação no crime e atribuíram a maior parte da culpa a Maurício, conhecido como Sexta-feira Treze. Ele, por sua vez, havia morrido anos antes ao sequestrar um bicheiro do Rio.

O promotor justifica a prisão de Cláudio Luiz, Cortes e Jurandir, que acabaram absolvidos, pela semelhança com os outro suspeitos: “O Sexta-feira Treze e Cláudio Luiz eram muito parecidos, eram negros e magros. O Alcântara era corpulento assim como Cortes, e ambos tinham a mesma falha nos dentes da frente. E o Jurandir parecia o Cunha”, afirma Piñeiro.

Alcântara foi sentenciado a 204 anos. Cunha pegou penas que somaram 45 anos após recorrer do primeiro julgamento. Em 2003, Emmanuel foi condenado a 300 anos de prisão. Hoje, os três estão em liberdade.

CAMILA ZARURRUR / Folhapress

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