Especialistas veem censura em veto da Caixa a obra com Arthur Lira no lixo

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A decisão da Caixa Econômica Federal de cancelar a exposição “O Grito” após críticas do centrão e de bolsonaristas é um ato de censura autoritário e inconstitucional que abre precedentes perigosos, afirmam especialistas em direito cultural ouvidos pela reportagem.

A obra que motivou o cancelamento da mostra se chama “Coleção Bandeira”, um lambe-lambe no qual a artista plástica Marília Scarabello expôs mais de 600 bandeiras do Brasil. Colhidas na internet, as montagens manifestam visões de diversos espectros políticos, da direita à esquerda.

A Caixa diz que o trabalho fere as normas do programa de patrocínio. “Considerando que foi identificada na exposição manifestação de conteúdo partidário, o que fere o contrato assinado entre as partes para execução do projeto, a Caixa decidiu cancelar a referida exposição”, disse o banco, em nota.

Uma das gravuras mostrava o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em uma lata de lixo estampada com a bandeira do Brasil. No mesmo cesto, estavam imagens do ex-ministro Paulo Guedes e da senadora Damares Alves (Republicanos-DF).

Parlamentares bolsonaristas tiraram a imagem de contexto nas redes sociais e insuflaram seus seguidores contra a exposição, patrocinada pela Caixa. A deputada federal Bia Kicis (PL-DF) protocolou um requerimento para convocar o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a prestar esclarecimentos.

O cancelamento é visto por artistas e especialistas como censura e ato inconstitucional, visto que o regulamento do edital não proíbe obras de cunho político. O contrato firmado entre o banco e a produtora da exposição, ao qual a Folha de S.Paulo teve acesso, tampouco proíbe essas obras, apesar de barrar aquelas com viés partidário.

De acordo com Cris Olivieri, advogada especializada em cultura, o cancelamento não se sustenta do ponto de vista jurídico. “É uma afronta flagrante à Constituição e à liberdade de expressão. Cabe ao Ministério Público apurar esse comportamento, da mesma maneira que fez com o Santander.”

A advogada se refere ao imbróglio envolvendo a exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, realizada em 2017 no Santander Cultural, em Porto Alegre. À época, a instituição decidiu cancelar a mostra após protestos acusarem o projeto de blasfêmia a símbolos religiosos, além de pedofilia e zoofilia.

O Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul recomendou a reabertura da exposição e informou que a atitude de encerrá-la seria prejudicial à liberdade de expressão. No ano seguinte, o Santader assinou um termo com a Promotoria se comprometendo a fazer duas mostras sobre diferença e diversidade, temas presentes no evento cancelado.

“O Ministério Público precisa agir como agiu na época do Santander para proteger a artista, mas também para proteger a gente. Nós, cidadãos, temos o direito de acessar obras de arte brasileiras”, diz Olivieri, que não vê sentido no argumento de que a obra teria viés partidário. “Para ser partidário, a obra tinha que estar numa propaganda política, não num espaço expositivo.”

O advogado Fábio Cesnik, especialista em leis de incentivo fiscal à cultura, também afirma que o cancelamento viola garantias constitucionais, uma vez que o artigo 5º diz ser livre a expressão de atividades intelectuais e artísticas.

“Não vejo nenhum tipo de amparo para essa decisão”, diz ele. “Por ser um banco público, a Caixa deveria prezar mais ainda pela visão pública e pela liberdade de expressão.”

Esta não seria a primeira vez que a estatal censura obras de arte. Em 2019, a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem mostrando que a instituição havia criado um sistema de censura prévia a projetos culturais realizados em seus espaços.

As regras exigiam que detalhes do posicionamento político dos artistas, o comportamento deles nas redes sociais e outros pontos polêmicos sobre as obras constassem de relatórios internos avaliados pela estatal antes que projetos aprovados nos editais entrassem em cartaz.

À época, os funcionários disseram que temas que desagradavam o então presidente Jair Bolsonaro, como questões de gênero e sexualidade, deveriam ser informadas nos relatórios.

Desta vez, a censura acontece no momento em que o governo Lula acomoda na estatal indicados do centrão em troca de apoio no Congresso. Na última quarta-feira (25), o chefe do Executivo demitiu a presidente da Caixa, Rita Serrano, e deu o comando do banco para o economista Carlos Antônio Vieira Fernandes, um aliado de Lira.

Nos bastidores, o cancelamento da mostra é visto como fruto da pressão política exercida contra a Caixa. A justificativa que o banco deu publicamente para encerrar a exposição é vista por especialistas como frágil e contraditória.

A advogada Aline Akemi Freitas diz que o regulamento do edital prevê o respeito à pluralidade, requisito que a obra atendeu ao expor manifestações de múltiplos setores da sociedade. “O cancelamento, depois de uma crítica, parece censura e uma leitura inconstitucional da liberdade de expressão. Ela acende o sinal amarelo e se torna um exemplo do que não pode ser feito”, diz ela.

A artista plástica Marília Scarabello afirma que o argumento da Caixa para censurar sua obra não se sustenta. O trabalho, diz ela, não privilegia uma determinada corrente política, mas apresenta visões de diferentes grupos, inclusive dos apoiadores do ex-presidente Bolsonaro.

“O trabalho virou um diário de bordo do que aconteceu no Brasil nos últimos anos. Agora, ele se tornou um diário de bordo do que está acontecendo na minha vida”, diz ela, que vem sofrendo ataques frequentes nas redes sociais. “Tenho sofrido assédio moral e uma lista de calúnias, difamações e agressões sem fim.”

Scarabello afirma que a censura causa espanto, porque a exposição não foi organizada às escondidas, ou seja, o banco viu a mostra montada antes de ela ser aberta, na Caixa Cultural, em Brasília.

Curadora do projeto, Sylvia Werneck reforça que a estatal conhecia o teor dos trabalhos. “Tenho a absoluta convicção de que estávamos fazendo tudo de acordo com as regras do edital.”

Ela diz que, na última segunda-feira (23), teve uma reunião com a empresa, na qual solicitaram uma nota de esclarecimento em razão dos ataques. “Disseram que Bia Kicis e Damares estavam replicando o vídeo, mas que sabiam ser uma interpretação errônea. Só que eles queriam se prevenir.”

Na quarta-feira, porém, ela descobriu que a mostra havia sido cancelada. “É uma decisão bastante preocupante e só posso entendê-la como uma forma censura”, afirma Werneck.

MATHEUS ROCHA / Folhapress

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