Ataques à democracia reavivam debate sobre proteção à imprensa nos EUA

WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Estabelecida como um pilar democrático, a proteção à imprensa contra processos que alegam difamação é uma das consequências pouco conhecidas do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. A ascensão de Donald Trump ao poder e, sobretudo, sua recusa em aceitar a derrocada em 2020 reabriram o debate sobre a responsabilidade de empresas jornalísticas sobre o conteúdo reproduzido.

A legislação americana sobre difamação varia de estado a estado, mas, em linhas gerais, estabelece que declarações falsas que prejudiquem a reputação de uma pessoa são passíveis de processo. Isso abrange de imputação criminal a ofensas à atuação profissional e comportamento sexual de uma pessoa.

No Brasil, o STF (Supremo Tribunal Federal) aprovou uma tese prevendo a possibilidade de responsabilização civil de empresas jornalísticas que publicarem entrevistas que imputem crime a terceiros, quando houver indícios concretos de falsidade.

A decisão gerou reação de entidades que atuam na defesa da liberdade de imprensa. Para especialistas, ainda falta esclarecer qual é o dever de cuidado que o veículo precisa ter e como serão tratadas circunstâncias como entrevistas ao vivo. O próprio STF admite mexer na decisão.

Nos EUA, um veículo que publique uma reportagem, uma declaração de um entrevistado, um anúncio ou mesmo uma carta ao editor cujo conteúdo seja acusado de difamatório pode ser alvo de uma ação na Justiça. E, até os anos 1960, isso era relativamente fácil.

Theodore Roosevelt venceu uma ação contra um jornal de Michigan que afirmou que ele ficava bêbado “não raramente”. O Chicago Tribune foi condenado por chamar o industrial Henry Ford de anarquista em um editorial e teve que pagar US$ 0,06 –o equivalente a pouco mais de US$ 1 hoje.

Os casos são recontados por Samantha Barbas, especialista em história do direito, no livro “Actual Malice” (efetiva má-fé), publicado em fevereiro, sobre a decisão da Suprema Corte que mudou o trabalho da imprensa nos EUA.

Nos anos 1960, o movimento contra o fim da segregação racial nos estados do sul usou os processos de difamação para intimidar a cobertura crítica feita por jornais do norte do país.

Após publicar um anúncio de um comitê para angariar recursos para a defesa legal de Martin Luther King, o New York Times foi alvo de uma ação no Alabama.

O jornal perdeu o processo nas instâncias inferiores, mas, ao recorrer à Suprema Corte, os juízes reverteram a derrota, entendendo que a liberdade de expressão e de imprensa deveria ser protegida.

Assim, foi estabelecido que, no caso de autoridades públicas, o autor da ação de difamação deveria provar efetiva má-fé –definida como conhecimento de que a declaração era falsa ou desprezo imprudente da possibilidade de ela ser falsa.

Nos anos seguintes, o entendimento foi ampliado para figuras públicas ou temas de interesse público. Para cidadãos comuns, é preciso provar ao menos negligência.

“A ideia por trás é encorajar reportagens e discussões robustas de questões de interesse público, evitando que um repórter que faça seu trabalho corretamente desista de uma reportagem por temer um processo de difamação”, afirma Jennifer Nelson, advogada sênior do Comitê de Repórteres pela Liberdade de Imprensa (RCFP, na sigla em inglês), organização fundada nos anos 1970 que atua na defesa do trabalho jornalístico nos EUA.

A sentença, conhecida como New York Times v. Sullivan, se tornou o paradigma para a atuação jornalística, reconhecendo que é mais importante aceitar a ocorrência de eventuais erros, se não forem resultado de má-fé, do que coibir o trabalho de veículos e a manifestação de críticos pelo temor de um processo de difamação.

Com isso, tornou-se muito mais difícil vencer um processo por difamação contra uma pessoa ou um veículo de imprensa, o que gerou críticas, sobretudo do campo conservador.

Dois juízes da Suprema Corte já defenderam a revisão da sentença: Clarence Thomas, ele próprio alvo de diversas reportagens que mostraram que ele aceitou presentes e teve viagens bancadas por nomes da elite conservadora, e Neil Gorsuch.

Para Thomas, a proteção tem um custo alto ao permitir que “falsas insinuações sejam lançadas sobre figuras públicas com quase impunidade”. Indicado por Trump, Gorsuch disse que a sentença é um “subsídio inabalável para a publicação de falsidades por meio e em uma escala anteriormente inimaginável”.

O próprio ex-presidente já afirmou diversas vezes que o entendimento sobre difamação precisa ser alterado, classificando a proteção a veículos de imprensa como uma “desgraça”.

Pouco antes de o empresário tomar posse, uma reportagem do BuzzFeed publicou um dossiê que relatava laços entre a campanha de Trump e o governo russo. Empresas de tecnologia citadas no material processaram o site por difamação, alegando desprezo imprudente pela possibilidade de as afirmações serem falsas, mas perderam o processo.

O BuzzFeed argumentou que se tratava de um tema de interesse público, do qual tanto o então presidente, Barack Obama, quanto seu sucessor, Donald Trump, tinham conhecimento, e que a reportagem deixava claro que o dossiê trazia alegações “específicas, não checadas, e potencialmente inverificáveis”. Por isso, a Justiça entendeu que o site estava protegido pelo precedente da New York Times v. Sullivan.

Desde 2020, a revisão da sentença começou a ganhar apoiadores à esquerda, depois da veiculação de alegações, sem provas, de fraude eleitoral feitas por Trump e seus apoiadores, reproduzidas por parte da imprensa americana.

Em abril, a Fox News concordou em pagar US$ 787,5 milhões à empresa de sistemas de votação Dominion, que processou o canal conservador por difamação por veicular acusações feitas por apoiadores de Trump de que a tecnologia da empresa alterava votos no republicano para imvotos em Biden.

Embora o caso não tenha ido a julgamento em razão do acordo, anunciado na última hora, a perspectiva é que seria uma batalha difícil para a Fox, algo raro em razão do precedente da Suprema Corte.

Isso porque, nos trâmites pré-julgamento, foram divulgados emails e trocas de mensagens entre executivos e jornalistas do canal em que ficava claro que eles tinham ciência de que as alegações eram falsas –preenchendo o critério de efetiva má-fé.

Já um segundo processo movido pela Dominion, este contra o canal Newsmax, ainda está em tramitação, e deve ser julgado apenas no próximo ano. Neste caso, as perspectivas de acordo ou vitória já são dúbias, na ausência de evidências que mostrem que o canal sabia que as alegações de fraude eram falsas.

“E se a democracia fosse melhor servida pela restrição do alcance de New York Times v. Sullivan, reduzindo a cultura de impunidade e incentivando os meios de comunicação a serem mais responsáveis sobre os fatos que divulgam?”, questionou a professora da Faculdade de Direito de Harvard Jeannie Suk Gersen em um longo artigo publicado na New Yorker.

Para ela, o precedente “permite efetivamente a publicação de declarações negligentemente falsas sobre figuras públicas, definidas de forma muito ampla, em nome da proteção do debate e da crítica necessários para fazer uma democracia funcionar” –minando, no limite, o próprio valor que visa proteger.

Já Nelson, da RCFP, afirma que o modelo atual já impele veículos a fazerem seu trabalho responsavelmente, buscando contatar todos os envolvidos em uma reportagem e publicar um material que reflita todas as perspectivas. Ela é contra uma revisão do precedente.

“Eu acredito que a exigência de efetiva má-fé é incrivelmente importante nos EUA, e provê proteção adequada para o jornalismo em matérias de interesse público. Sem a New York Times v. Sullivan, nós veríamos um efeito intimidador e histórias importantes deixarem de serem contadas.”

FERNANDA PERRIN / Folhapress

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