BOA VISTA, RORAIMA (FOLHAPRESS) – O Hospital da Criança Santo Antônio, em Boa Vista (RR), é um dos principais termômetros da crise humanitária enfrentada pelos yanomamis. Com alas minimamente adaptadas aos indígenas, equipadas com redários, e leitos de UTI, a unidade é a única em Roraima que recebe crianças com desnutrição grave e com doenças oportunistas da fome pneumonia, anemia e diarreia.
A Folha de S.Paulo esteve na ala dos yanomamis em janeiro de 2023, quando a crise de saúde havia atingido o ápice, e retornou ao hospital nesta quinta-feira (11), quase um ano depois da declaração de emergência em saúde pública pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), num momento em que o garimpo retoma a força na terra indígena, com impacto direto na saúde comunitária.
Os médicos afirmam que a desnutrição persiste entre as crianças yanomamis, conjugada a outras doenças, e de forma grave. Mas, segundo os profissionais de saúde, não há mais predominância de situações extremas, com quadros mais estabilizados no momento do ingresso no hospital na capital de Roraima.
O que os médicos dizem é visível para quem esteve na ala dos yanomamis em janeiro de 2023 e em janeiro de 2024.
Há um ano, a reportagem encontrou crianças magérrimas e em exaustão pelo quadro de diarreia e pneumonia, boa parte delas sem as mães, também com desnutrição grave e internadas em outros hospitais.
A ala com redários continua abrigando crianças yanomamis desnutridas, mas em situações menos extremas. Desta vez, elas estavam acompanhadas das mães. As equipes de saúde se mostravam mais otimistas quanto à recuperação, com período médio de internação de sete a nove dias.
O fluxo de pacientes internados com desnutrição, desidratação, pneumonia, bronquiolite, anemia, diarreia e malária foi maior em 2023 em comparação com 2022, o que indica a persistência da crise humanitária na terra yanomami, ainda distante de indicadores minimamente satisfatórios de saúde.
A quantidade maior de internações se refletiu numa quantidade maior de mortes de crianças. Em 2022, 703 crianças yanomamis foram internadas no Hospital da Criança; 26 morreram, pelos dados atualizados. Em 2023, primeiro ano da emergência em saúde pública, declarada pelo governo em 20 de janeiro, foram 958 internações e 37 óbitos, conforme a administração do hospital.
Profissionais que atuam na emergência em saúde atribuem a elevação de internações e óbitos a uma maior identificação de casos graves na terra indígena, a partir da ampliação da presença de equipes médicas. E também a uma persistência da fome em diferentes comunidades e regiões da maior terra indígena do Brasil, agravada por novas levas de invasão garimpeira.
Nesta quinta, estavam internados no Hospital da Criança 52 crianças yanomamis, das quais sete estavam em leitos de UTI, em razão da gravidade de infecções respiratórias, especialmente pneumonia.
Quando a Folha de S.Paulo esteve no hospital em 2023, em 25 de janeiro (cinco dias após a declaração de emergência), havia cinco crianças intubadas na UTI. A unidade integra a rede municipal de saúde.
Uma das mães yanomamis que passam os dias no Hospital da Criança, acompanhando os filhos, é uma adolescente de 13 anos. Ela é sanumá, um subgrupo dos yanomamis que fica mais ao norte da terra indígena, já na fronteira com a Venezuela.
As comunidades no território só são alcançadas por avião. O transporte de mãe e filha sanumás, levadas da região de Auaris, que fica na área de fronteira, levou quase duas horas, um trajeto que ocorre todos os dias, por diversas vezes, a cargo do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami, vinculado ao Ministério da Saúde.
A filha de um ano e nove meses pesa 5 kg. Deveria pesar entre 10 e 12 kg, segundo os médicos. A mãe não está desnutrida, apenas acompanha o tratamento. A transferência ao Hospital da Criança foi necessária em razão de um quadro de pneumonia. A internação já dura quase um mês.
São frequentes os casos de reinternações, devido a sucessivas desnutrições severas. Em algumas situações, reingressos ocorrem no mesmo dia. A criança deixa o hospital, é levada à Casai (Casa de Saúde Indígena) Yanomami também em Boa Vista, numa região afastada da cidade e retorna ao fim do dia, diante do entendimento de que a desnutrição demanda internação.
Os encaminhamentos ao hospital aumentaram em outubro, novembro e dezembro. É exatamente quando novas invasões garimpeiras passam a ocorrer no território, a partir de um enfraquecimento das operações de retirada de invasores e de destruição de maquinários.
“As doenças se agravam pela questão nutricional. Com o garimpo, essa situação se agrava mais”, afirma Regiane Matos, secretária de Saúde do município de Boa Vista. “A emergência em saúde fez com que crianças desnutridas fossem resgatadas. Houve dia em que recebemos 18, 20 crianças.”
Pacientes deixam o hospital com infecções curadas, mas ainda com uma realidade de falta de acesso a alimentos básicos. “O corpo dessa criança acaba se adaptando, com prejuízo no crescimento e pouca estrutura de massa muscular. E doenças simples se agravam, como pneumonia”, diz Aline Ribeiro, diretora clínica do Hospital da Criança.
Registros fotográficos recentes, feitos por lideranças indígenas, mostram crianças com desnutrição grave. Em alguns registros, as crianças estão em atendimento médico.
Parte das imagens é de um resgate médico de três crianças desnutridas em uma comunidade na fronteira com a Venezuela, segundo o Ministério da Saúde. A operação foi de alto risco devido à presença de garimpeiros, conforme a pasta.
Em 2023, 307 crianças com desnutrição grave ou moderada foram recuperadas, afirmou o ministério.
O relatório mais recente do COE (Centro de Operação de Emergências) Yanomami, ligado ao Ministério da Saúde, mostra que 308 yanomamis ou indígenas de outros subgrupos na região morreram em 2023. Os dados incluem registros até 30 de novembro. Mais da metade dos óbitos foi de crianças de até 4 anos.
Entre as causas principais das mortes estão pneumonia, diarreia, malária e desnutrição.
Na terça (9), após reunião ministerial convocada pelo presidente Lula, o governo federal anunciou a presença de uma “casa de governo” em Roraima para tratar das ações na terra yanomami e a instalação de três bases de vigilância no território, com forças de segurança como PF (Polícia Federal) e Forças Armadas. Os gastos previstos são de R$ 1,2 bilhão.
VINICIUS SASSINE / Folhapress