SÃO PAULO, SP, E LONDRES, REINO UNIDO (FOLHAPRESS0 – Uma das artistas mais dramáticas do mundo, sem medo de palco –aliás, com fome dele ao longo das últimas décadas–, a sérvia Marina Abramovic fez uma discreta passagem-relâmpago por São Paulo neste fim de semana de pós-Carnaval.
Depois de inaugurar uma instalação na Usina de Arte, um museu de arte contemporânea nos arredores do Recife, Abramovic curtiu duas raríssimas semanas de férias em Pernambuco e viajou a São Paulo antes de pegar um voo de volta a Nova York, onde vive.
O jet-set voltou a ser novidade para ela. Abramovic passou um bom tempo parada, conta seu marido, o produtor cultural americano Todd Eckert, que agora viaja o mundo com um espetáculo de hologramas dedicado à obra do compositor japonês Ryuichi Sakamoto.
Isso porque, há pouco menos de um ano, a artista -que transcende imortalidade em performances sempre ancoradas no fio da navalha entre vida e morte- quase morreu.
Um problema nos pulmões a levou a uma mesa de cirurgia por 18 horas. Quase todo o seu sangue foi trocado por aparelhos. E, em um castigo para quem se acostumou a voar pelo planeta abrindo exposições e fazendo performances ao longo das últimas cinco décadas, ela estava proibida de entrar num avião.
Mas Abramovic tinha na agenda a maior mostra de sua carreira, compromisso de fazer inveja a meio mundo da arte, uma grande retrospectiva na Royal Academy of Arts, em Londres, um dos museus mais importantes do mundo.
Então lá foi ela de navio mesmo, à moda antiga. Do porto do Brooklyn, em Nova York, até a capital britânica, foi uma semana de uma paisagem tão idílica quanto anódina, o azul do Atlântico a perder de vista, galgando minutos e horas adiante no fuso horário rumo à Europa a cada dia de trajeto. A trilha sonora, longe de tranquila, era o som da algazarra dos passageiros mais bêbados a bordo -Abramovic e o marido nem encostam em álcool.
Eckert, o discreto senhor Abramovic há sete anos, conta que ali eles tiveram noção plena de tudo o que separa,a imensidão -no caso, a América da Europa- sem dispensar metáforas para o abismo cultural entre um e outro continente. E a presença de Abramovic, questão de ensaios, críticas de arte e memes desde uma mostra blockbuster no Museu de Arte Moderna, o MoMA, em Nova York, nunca pareceu tão sentida a ponto de chacoalhar o establishment.
Em Manhattan, Abramovic encarnou uma esfinge. Em “The Artist Is Present”, ou a artista está presente, encarou horas a fio cada visitante do MoMA que quisesse olhar dentro de seus olhos, em absoluto silêncio, atrás de uma resposta qualquer, transcendental ou corriqueira que fosse.
Já em Londres, uma catedral se ergueu em torno de sua ausência. A mostra na capital britânica, com performers nus, como manda o figurino da artista, é uma “ego trip” exuberante, uma retrospectiva do bom e do melhor da mulher que reinventou e reenquadrou a performance como pilar sólido da arte no século 20 aliada a novos trabalhos e uma cenografia hiperbólica, como grandes cruzes iluminadas estampadas com seu rosto.
Um dado à parte em relação à nudez. No passado, era a própria Abramovic e seu antigo marido, o alemão Ulay, que ficavam pelados cara a cara no vão estreito entre uma galeria e outra. Quem visitasse precisava se esgueirar entre os dois, fazendo a escolha entre encarar o homem ou a mulher.
Radical e cabeça dura, Abramovic nunca abriu mão de manter esse trabalho em retrospectivas, um clássico, afinal, mas, diante dos pudores da geração Z e de um mundo cada vez mais aborrecido, ela cedeu e aceitou que quem não quisesse se esfregar em ninguém pelado pudesse usar outra porta, sem nada.
Foi diferente em Nova York, e isso veio à tona quando a mostra londrina já ganhava as manchetes da imprensa especializada. Um performer que participou de “The Artist Is Present”, em 2010, decidiu processar agora o MoMA, afirmando que foi apalpado por visitantes. Em São Paulo, Abramovic só se disse espantada com o que aconteceu e questionou por que ele levaria tanto tempo para fazer a queixa, já que se passou mais de uma década desde o episódio.
Isso não abalou a artista, que montou em Londres um altar para a própria obra como nunca se tinha visto até o momento. Numa série de novas esculturas, Abramovic petrificou o próprio rosto incendiário, gritando a plenos pulmões, em camadas de alabastro, uma obra tão tátil e sólida, escultura incontornável, quanto etérea, um fotograma volátil transformado em pedra reluzente.
É um ponto alto, embora egoísta até não mais poder, de uma mostra apoteótica. Abramovic sabe construir e cultivar a própria mitologia, plena de vida e ao mesmo tempo carregada de uma pulsão de morte.
Seus amigos, como sua galerista paulistana Luciana Brito, que a representa no Brasil e orquestrou o jantar em seu apartamento na Vila Nova Conceição em torno dela, sempre lembram os opostos polares de seu guarda-roupa, ou tudo preto ou tudo branco.
Nessa noite de verão, Abramovic usou um vestido longo e esvoaçante, branco com manchas pretas, como óleo viscoso que não se mistura com a água. Ela demonstrou certa confusão com o calendário do Carnaval, uma festa de dias que, para ela, já pareciam semanas, mas estava alegre. Depois de um copo d’água, era hora de ir para casa.
SILAS MARTÍ / Folhapress