SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Por causa de uma maré de azar, Nelson Freire, um dos maiores pianistas do século 20, perdeu o desejo de viver. Medroso, ele já andava devagar, passinho a passinho. Nem assim evitou as duas quedas que o vitimariam. Primeiro, em 2019, quando tropeçou no calçadão da praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Dois anos depois, escorregou na borda da piscina de sua casa, no Joá.
Nos acidentes, fraturou o braço direito e a mão esquerda, nesta ordem. Mesmo recuperado, com cirurgia e fisioterapia, concluiu que jamais atingiria novamente a transcendência musical que caracterizava as suas interpretações. Caiu em depressão.
Os últimos dias de sua vida são retratados como uma temporada no inferno na primeira biografia dedicada ao músico, “Nelson Freire: O Segredo do Piano”, escrita pelo jornalista francês Olivier Bellamy. O livro vem causando revolta no meio da música de concerto por expor detalhes da intimidade do artista e sugerir que a causa de sua morte, segundo a família uma concussão cerebral provocada por uma queda, foi suicídio.
“Nunca imaginei uma biografia desse jeito. É um monte de fofocas, o autor nem fala da arte dele”, diz Gloria Guerra, amiga e empresária do pianista. “O autor parece não ter escrúpulos. Se esse senhor quis causar polêmica, conseguiu. Isso é imprensa marrom. Nelson ficaria deprimido”, afirma Roberto Tibiriçá, maestro que o conhecia desde os 12 anos.
Especializado em música de concerto, Bellamy apresentou, por uma década, um programa na “Radio Classique”, na França, e atualmente escreve para revistas especializadas. Foi um dos poucos que conseguiu entrevistar Freire, adquirindo certa aproximação com ele.
Em vida, o músico negou o pedido do jornalista para a biografia. Extremamente tímido e discreto, Freire mal falava caso o interlocutor não fosse uma das pessoas que compunham o seu reduzido círculo social. Para ele, a comunicação se articulava entre o som e o silêncio.
Ao piano, Freire era o anjo anunciador da “Melodia de Orfeu”, o famoso bis retirado da ópera barroca do compositor alemão Gluck. Longe dele, o silêncio chamava a atenção para o seu semblante, igualmente angelical em razão das bochechas rosadas e dos longos cílios.
Não é exagero dizer que o público, até agora, não sabia quem era Nelson Freire, o homem. “É impossível escrever uma biografia sem entrar na intimidade do personagem”, diz Bellamy, de seu apartamento em Paris, numa entrevista por videoconferência.
Além das quedas, a biografia enumera outros motivos para a depressão do músico, entre eles o isolamento social imposto pela pandemia. Foi nesse contexto que, segundo o livro, Freire começou a dizer que desejava morrer às pessoas com quem morava o marido, Miguel Rosário, e o assistente, João Bosco Padilha.
Melhor amiga de Freire, considerada uma das maiores pianistas de todos os tempos, a argentina Martha Argerich cancelou seus compromissos na Europa para passar alguns dias na casa do Joá. Ela perderia o amigo pouco tempo depois de ir embora. Na madrugada de 1º de novembro de 2021, Freire morreu.
Em seu livro, Bellamy, um católico fervoroso, recorre a alegorias religiosas para descrever o suposto momento do suicídio. Em seguida, porém, volta atrás na afirmação. “Ele caminha pelo terraço, sobe num banco, Deus sabe como, e mergulha na escuridão para se elevar aos céus sob o olhar da misteriosa Pedra da Gávea […] Como ele morreu? Só Deus sabe. Para nós, pobres mortais, somente os fatos têm valor de verdade.”
Também ao falar à reportagem o autor se contradiz. “Não é preciso escrever a palavra ‘suicídio’, porque a gente compreende o que se passou lendo”, afirma em determinado momento. “Somente Deus pode saber. Nós não sabemos cem por cento”, diz em outro.
Outras passagens que incomodaram pessoas do círculo social do instrumentista se devem ao escrutínio que o biógrafo faz de sua vida íntima.
Decerto, Bellamy parece deixar de lado, em alguns momentos do livro, a arte do pianista. O autor detalha noites tórridas que Freire passou com Alexis Weissenberg, um importante pianista búlgaro, entre outros romances. Também revisita o maior trauma do músico, o acidente de ônibus que matou os seus pais, no Viaduto das Almas, no interior de Minas Gerais, quando ele tinha 22 anos.
O biógrafo afirma que a riqueza de detalhes se deve à estima depositada nele por pessoas próximas a Freire. “As pessoas confiaram em mim e não tiveram reservas quando deram seus depoimentos. Eu não as traí nem traí Nelson, mas compreendo que estejam chocados”, diz. “Freire era um homem de musas.”
É verdade que Freire deve a uma série de mulheres a formação de seu gênio musical. Era um devoto de Guiomar Novaes, de quem tomou muitas lições. Quando, ainda criança, se mudou com a família para Ipanema, passou a ter adoração por Nise Obino, a professora de piano.
Longe dela, ao ganhar uma bolsa para estudar em Viena, ficou triste. Odiou a rigidez do novo mentor, Bruno Seidlhofer. Mas foi na capital austríaca que conheceu, ainda adolescente, Argerich, sua musa definitiva.
Se cada pianista constrói um mundo particular, Freire e Argerich viviam juntos em um outro plano existencial. Por ironia, tinham personalidades bem distintas. O brasileiro era hipersensível, e a argentina, arisca.
Tampouco os repertórios eram iguais. É difícil eleger apenas um compositor para Freire. Talvez Brahms, é certo, e o “Concerto nº2”. Mas seu sucesso ocorreu com a mobilização de peças específicas, aqui e acolá, de grandes nomes da história da música, como Villa-Lobos, Chopin e Rachmaninoff.
No que se refere ao seu estilo, a melhor definição está no livro de Bellamy. Certa vez, diz o texto, o pianista russo Nikolai Luganski disse que Freire tocava como se sua mão não tivesse ossos, tamanha delicadeza e maciez com que seus dedos atacavam as teclas.
Foi dominando um repertório muito particular que Freire se apresentou nos principais palcos do mundo, ao lado da Filarmônica de Berlim, das orquestras sinfônicas de Viena e de Londres e até com a Gewandhaus, de Leipzig, na Alemanha.
Vivendo entre Paris e Rio de Janeiro, ele se tornou uma referência. Mas só foi reconhecido como uma estrela nos anos 2000, quando passou a gravar com a Decca. Do período, surgiram os discos “Brahms: The Piano Concertos”, de 2005, e “Brasileiro: Villa-Lobos & Friends”, de 2012.
Em 2003, o cineasta João Moreira Salles registrou o amor que o público passou a devotar ao pianista no documentário “Nelson Freire”. O filme conta os bastidores da carreira do músico e tematiza a amizade com Argerich, com cenas gravadas na casa dela, em Bruxelas.
O diretor não abordou então os temas explorados no livro. “Vivemos um momento de evasão de privacidade. Todas as pessoas com alguma visibilidade passaram a fazer um espetáculo de si. Nelson era o oposto. Ele sabia que certas coisas pertencem à vida privada e não devem ser franqueadas”, afirma Moreira Salles.
O diretor tomou emprestado o silêncio de Freire e o transformou em matéria-prima do filme. É o silêncio que impera nas cenas em que o pianista, sempre tenso antes das apresentações, anda de um lado para o outro nas coxias. Moreira Salles diz que aprendeu ali que a fala é apenas um dos muitos modos de comunicação.
Já Bellamy descreve os encontros no Joá e as visitas que fez a Freire na casinha do pianista na rue Chaillot, vizinha a um outro imóvel de Argerich, em Paris. Nessas ocasiões, ele conta, o músico ficava mais relaxado. Contava piadas e adorava assistir a filmes junto com os amigos.
Cristian Budu, considerado o sucessor do músico, também esteve com Freire na capital francesa no fim da vida. “Ele tinha um jeito muito mineiro. Por isso, me ensinou a buscar uma intimidade com a música”, diz ele. “Só assim a melodia se transforma numa poesia sem palavras.”
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress