Hoje, 21 de março, é o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial. Além de falar sobre a origem da data, separamos 10 canções da MPB que tratam sobre o tema para refletir.
Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial
No dia 21 de março de 1960, em Joanesburgo, na África do Sul, 20 mil pessoas realizavam um protesto, organizado pelo Congresso Pan-Africano (PAC), contra a Lei do Passe, que limitava os lugares por onde a população negra podia circular, obrigando-os a portar um cartão que continha os locais onde era permitida a sua circulação.
A manifestação era pacífica e completamente desarmada, mas a polícia sul-africana do regime de segregação racial presente no país desde 1948, o Apartheid, atirou contra os manifestantes, matando 69 pessoas e deixando outras 186 feridas.
O Massacre de Shaperville
Este episódio terrível ficou conhecido como o Massacre de Shaperville, nome do bairro onde tudo aconteceu.
Após esse dia, a opinião pública mundial focou sua atenção pela primeira vez na questão do Apartheid. Em memória à tragédia, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu, desde 1969, o 21 de março como o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial.
Todos os anos, o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial tem um tema específico e o tema atual é Youth standing up against racism, ou – em português – A juventude levantando-se contra o racismo. Na África do Sul, o Dia dos Direitos Humanos é celebrado nesta data, tornando-se um feriado público.
Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial: 10 canções da MPB sobre o tema
Hoje, 62 anos depois, ainda nos deparamos com terríveis, absurdos e inaceitáveis episódios de racismo e discriminação diariamente em nossa sociedade. Para engrossar esse coro na luta contra a discrimiação racial, nós trouxemos uma lista de 10 canções da MPB que tratam deste tema tão importante e urgente.
1 – Tributo a Martin Luther King (1967) – Wilson Simonal e Ronaldo Bôscoli
Sim, sou um negro de cor
Meu irmão de minha cor
O que te peço é luta sim, luta mais
Que a luta está no fim
La la la la la la la… (uohh-oh-oh)
Cada negro que for
Mais um negro vira
Para lutar
Com sangue ou nao
Com uma canção
Também se luta irmão
Ouvir minha voz, Oh yes
Lutar por nós
Luta negra demais
E lutar pela paz
Luta negra demais
Para sermos iguais
Composta por Wilson Simonal e Ronaldo Bôscoli, em 1967, para homenagear o grande ícone e referência na luta pelos direitos civis americanos, Tributo a Martin Luther King é um hino da luta contra o preconceito racial. César Camargo Mariano fez os arranjos e a canção foi gravada por Simonal em compacto no mesmo ano, mas só pôde ser lançada meses depois, por conta da censura.
Na entrega do Troféu Roquete Pinto de 1967, Simonal fez um discurso histórico sobre esta composição:
“Essa música, eu peço permissão a vocês, porque eu dediquei ao meu filho, esperando que no futuro ele não encontre nunca aqueles problemas que eu encontrei, e tenho às vezes encontrado, apesar de me chamar Wilson Simonal de Castro.”
Simonal é pai dos cantores, compositores, multi-instrumentistas e produtores Wilson Simoninha e Max de Castro.
2 – Zumbi (1974) – Jorge Ben Jor
Angola Congo Benguela
Monjolo Cabinda Mina
Quiloa Rebolo
Aqui onde estão os homens
Dum lado cana de açúcar
Do outro lado o cafezal
Ao centro senhores sentados
Vendo a colheita do algodão branco
Sendo colhidos por mãos negras
Eu quero ver
Quando Zumbi chegar
O que vai acontecer
Zumbi é senhor das guerras
É senhor das demandas
Quando Zumbi chega
É Zumbi é quem manda
Nesta canção de 1974 (também conhecida como África Brasil), Jorge Ben Jor homenageia outra figura importantíssima para a história do povo negro: Zumbi dos Palmares, o último dos líderes do Quilombo dos Palmares, o maior dos quilombos do período colonial.
Zumbi é um dos maiores personagens e símbolos da história no que diz respeito à resistência do povo negro contra a escravidão e sua luta por liberdade.
Jorge Ben Jor faz referências à ancestralidade africana, tanto na letra quanto na musicalidade de Zumbi, de forma majestosa.
3 – Lágrima do Sul (1985) – Milton Nascimento e Marco Antônio Guimarães
Pele negra, quente e meiga
Teu corpo e o suor
Para a dança da alegria
E mil asas para voar
Que haverão de vir um dia
E que chegue já, não demore, não
Hora de humanidade, de acordar
Continente e mais
A canção segue a pedir por ti
(A canção segue a pedir por nós)
África, berço de meus pais
Ouço a voz de seu lamento
De multidão
Grade e escravidão
A vergonha dia a dia
Mais uma belíssima homenagem a uma personalidade importantíssima na luta por equidade racial no mundo. Desta vez é Milton Nascimento, junto com seu parceiro Marco Antônio Guimarães, que homenageia Nelson Mandela – o mais importante líder da África Negra, mais poderoso símbolo de resistência e da luta contra o regime segregacionista do Apartheid, ativista pelos direitos humanos e vencedor do Prêmio Nobel da Paz – e a sua então esposa Winnie.
A letra enaltece o continente africano como berço do povo negro brasileiro, lamenta todas as desigualdades existentes na região, e ressalta o “vento” que vem do “Sul” como uma história que se repete, referindo-se ao violento regime de segregação racial na África do Sul, país do qual Mandela foi presidente entre 1994 e 1999, depois de passar 27 anos na prisão e depois do fim do Apartheid.
4 – Canto de Três Raças (1976) – Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte
Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi pro cativeiro
E de lá cantou
Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
Do Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Clássico composto por Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte para a musa Clara Nunes gravar no disco homônimo de 1976, Canto das Três Raças fala dos indígenas, nossos povos originários – que aqui já estavam quando os portugueses chegaram nesta terra que veio a ser o Brasil; dos africanos trazidos pela serem também escravizados em solo brasileiro; e, por fim, dos “colonizadores” brancos europeus.
Traz o “canto de dor” dos escravizados, lamentando o que poderia ter sido “um canto de alegria”, não fosse toda a violência e injustiça do sistema e do regime de escravidão. Uma letra de resistência, que nos convida a não naturalizar o que deve ser sempre combatido.
E Clara Nunes, grande estudiosa que era da cultura afro-brasileira, cantava sobre isso como ninguém.
5 – Sorriso Negro (1981) – Adilson Barbado e Jorge Portela
Sorriso negro
Um abraço negro
Traz felicidade
Negro sem emprego
Fica sem sossego
E negro é a raiz da liberdade
A primeira mulher a fazer parte da Ala de Compositores de uma escola de Samba na história foi uma mulher negra, que demorou 20 anos para poder ter os seus sambas assinados e reconhecidos como dela. Essa mulher se chama Ivone Lara da Costa: a Dona Ivone Lara!
Vencendo todas as barreiras impostas, não só pelo racismo e discriminação, mas também pela sociedade machista e patriarcal, Dona Ivone Lara tornou-se uma das maiores sambistas do país e gravou no seu terceiro disco, a canção-título composta por Adilson Barbado e Jorge Portela, em 1981: Sorriso Negro.
Nela, Ivone Lara canta sobre o racismo estrutural, a desigualdade e também sobre o orgulho do povo negro. Traz na voz a esperança de que possam sentir cada vez mais alegria e abracem de vez aquilo que é seu por direito: o direito de ser livre e de sentir felicidade. De sorrir o seu Sorriso Negro de forma plena.
6 – Olhos Coloridos (1982) – Macau
Os meus olhos coloridos
Me fazem refletir
Eu estou sempre na minha
E não posso mais fugir
Meu cabelo enrolado
Todos querem imitar
Eles estão baratinados
Também querem enrolar
Você ri da minha roupa
Você ri do meu cabelo
Você ri da minha pele
Você ri do meu sorriso
A verdade é que você
Tem sangue crioulo
Tem cabelo duro
Sarará crioulo
Hino do orgulho e do empoderamento do povo preto, a rainha da soul music brasileira, Sandra Sá, gravou o sucesso de Macau – Olhos Coloridos – em 1982, para o disco que leva o seu nome.
Além de exaltar com amor o seu “cabelo enrolado”, um dos maiores focos do racismo e da discriminação (que utiliza o termo “sarará”, reforçado na letra), a canção também lembra ao ouvinte branco e racista que todo o povo brasileiro tem o “sangue crioulo”, remetendo à nossa ancestralidade africana.
7 – Negro É Lindo – (1971) – Jorge Ben Jor
Negro é lindo
Negro é amigo
Negro também é
Filho de Deus
Eu só quero que
Deus me ajude
A ver meu filho
Nascer e crescer
E ser um campeão
Sem prejudicar
Ninguém porque
Negro é lindo
Negro é amor
Negro é amigo
Negro também é
Filho de Deus
Jorge Ben Jor compôs o samba-rock Negro é Lindo em 1971, para o disco Jorge Ben. Na canção, ele afirma o orgulho que sente por sua cor e exige respeito e igualdade, dando cada vez mais voz ao movimento de valorização do povo negro no Brasil e na música popular brasileira.
8 – Identidade (1992) – Jorge Aragão
Elevador é quase um templo
Exemplo pra minar teu sono
Sai desse compromisso
Não vai no de serviço
Se o social tem dono, não vai
Quem cede a vez não quer vitória
Somos herança da memória
Temos a cor da noite
Filhos de todo açoite
Fato real de nossa história
Se preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade
Trazendo toda a influência da ancestralidade africana também para o samba, Jorge Aragão compõe Identidade, em 1992.
A letra genial, forte e necessária questiona absurdos racistas inaceitáveis na nossa sociedade, como o elevador de serviço e a frase “preto de alma branca”, utilizados até os dias atuais de forma velada ou escancarada do racismo estrutural em nosso país.
Jorge não nos deixa esquecer o fato de que, como diz a historiadora, escritora e rapper Preta Rara:
“A senzala moderna é o quartinho da empregada”.
A escravidão, de fato, nunca acabou.
9 – Mão Da Limpeza – Gilberto Gil (1984)
O branco inventou que o negro
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Que mentira danada, ê
Iô, iô, iô
Iê, iê, iê
Na verdade, a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
Também escancarando o racismo estrutural, Gilberto Gil alerta para certas continuidades da herança escravagista nos dias atuais (atuais desde 1984 – quando a música foi composta – até hoje, infelizmente) na canção Mão da Limpeza, que entrou para o seu disco Raça Humana.
Na letra, Gil lembra que, mesmo depois de há tantos anos abolida a escravidão, a mão negra ainda é a responsável por limpar as sujeiras produzidas pelo homem branco. E por servir o homem branco. Até quando?
10 – A Carne – Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti (2002)
A carne mais barata do mercado é a carne negra
(Só-só cego não vê)
Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
E vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos
A carne mais barata do mercado é a carne negra
(Dizem por aí)
Que fez e faz história
Segurando esse país no braço, meu irmão
O cabra que não se sente revoltado
Porque o revólver já está engatilhado
E o vingador eleito
Mas muito bem intencionado
E esse país vai deixando todo mundo preto
E o cabelo esticado
Mas mesmo assim ainda guarda o direito
De algum antepassado da cor
Brigar sutilmente por respeito
Brigar bravamente por respeito
Clássico na voz marcante e extraordinária de Elza Soares, A Carne foi composta por Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, em 1998, para o álbum Moro no Brasil, da banda Farofa Carioca, e entrou para o disco Do Cóccix até o Pescoço, de Elza, em 2002.
Extremamente necessária, a canção escancara o racismo estrutural rasgante em nosso país, o abismo social e a falta de políticas públicas que tirem a total vulnerabilidade da população preta brasileira ao racismo, à discriminação, à violência e ao abandono.
Depois de muitos anos, Elza passou a cantar:
“A carne mais barata do mercado era a carne negra. Foi a carne negra. Agora não é mais”.
Em entrevista, ela declarou:
“Agora os negros têm força pra lutar. Somos a maioria. Vamos lutar e nos orgulhar.”.
Que Elza esteja certa, de onde estiver. Que, de uma vez por todas, a carne mais barata do mercado deixe de ser a carne negra.