RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – “No Rastro da Catarina”, novo disco de Cátia de França, ganha o mundo oito anos depois de seu predecessor, “Hóspede da Natureza”. A espera, que no relógio do mercado é uma demora enorme, afina-se com o olhar da cantora e compositora paraibana sobre o fazer artístico. Afinal, desde sua estreia com o cultuado “Vinte Palavras ao Redor do Sol”, em 1979, até hoje, este é apenas seu sétimo disco.
“Já estava há um tempo sem gravar desde ‘Hóspede da Natureza’. Tinha a cobrança do povo, né? Aquela mania que o povo tem de que todo ano tem que lançar, aquela loucura”, diz Cátia, com o falar que carrega a identidade única de sua música. “Em mim não existe isso. Tem que vir lá do alto, uma intervenção divina. É muito de engravidar da ideia, tem um tempo.”
A intervenção divina, desta vez, a fez revirar o baú em busca de material inédito. O resultado é um apanhado que reúne desde uma canção feita sobre um poema que ela escreveu aos 14 anos até uma finalizada no ano passado. A seleção do repertório foi feita por Cátia ao lado de sua produtora, Dina Faria, que assina a direção musical do álbum.
Com as canções escolhidas, Cátia -que mora na região serrana do estado do Rio de Janeiro- foi para João Pessoa gravar o disco, com uma banda formada apenas por músicos paraibanos. Cristiano Oliveira (viola, violão e violão de aço), Marcelo Macêdo (guitarra e violão de aço), Elma Virgínia (baixo acústico, baixo elétrico e fretless), Beto Preah (bateria e percussões) e Chico Correa (sintetizadores e samplers).
É um disco paraibano, portanto? Sim, mas não só. “Eu não sou daquela que fica querendo ficar presa as raízes, não”, diz a artista de 77 anos. “A música para mim tem que ser universal, não pode ter rótulo nem fronteira. Sou bem solta porque sempre ouvi muita coisa. A minha pegada tem a ver com Santana. Não o Santana do Forró, mas o Carlos Santana, o guitarrista. E muito José Feliciano também. Eu sou essa gama de coisas.”
Cátia não gravou como comumente se faz, com os instrumentos tocando separadamente, a voz registrada só depois do instrumental. “Eu rendo mais no ensaio, porque eu faço o ensaio como se estivesse num palco em Nova York. Não sei me poupar”, diz a cantora. “Eu tenho que incendiar os músicos. Porque cabeça de músico é duas coisas, cerveja e mulher. Se eu ficar apática, eles vão para outro plano. Então eu faço como se fosse o fim do mundo.”
Com produção assinada por Marcelo Macêdo e Chico Correa, “No rastro da Catarina” foi registrado então ao vivo. “Gravamos como se fosse na varanda de uma casa grande no interior de alguma cidade brasileira. A gente sentado, e todos te olhando e vendo as emoções, o que tava vindo à tona no rosto de cada um. Sem hierarquia, né?”
As 12 faixas de “No rastro da Catarina” passeiam por gêneros como samba, rock, tango e ijexá com igual vigor. Os temas tratados nas letras também são variados, mas cabem todos dentro do universo que a artista firmou ao longo de seus 50 anos de carreira. A literatura –inspiração primeira desde sua formação com os livros que sua mãe, a educadora Adélia de França, punha na sua mão– marca presença. Ela aparece em momentos como “Veias abertas”, inspirada no livro “Veias Abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano, e “Eu”, sobre poema de Florbela Espanca.
O poder de destruição da guerra (“Bósnia”) e da velocidade da sociedade contemporânea (“Academias e lanchonetes”) também são assunto de Cátia. Há espaço ainda para canções de amor. “Meu pensamento II”, letra antiga já gravada por Cátia e que volta agora com nova melodia, traz carga de sensualidade.
Já “Indecisão”, sobre o poema que escreveu aos 14 anos, reflete sobre o esfriamento da paixão. “Isso foi um negócio do alto, como eu digo”, conta Cátia. “Porque com 14 anos você sofre coisas vindas de pai ou mãe, não um amor não correspondido. Eu era muito nova para falar de um amor com essa propriedade, saber da finitude das coisas.”
A perspectiva da menina sobre o amor convive no disco com o olhar sobre a velhice que aparece em “Malakuyawa” (“Essa pele enrugada é como trilha/ Mapa revelando um país”). O posicionamento político de quem sempre se soube minoria –como mulher, negra, lésbica e nordestina– se afirma em canções como “Negritude” e “Em resposta” (“Já reparou que de sim/ Se faz a sua lavoura/ E que de não ninguém vive”).
“Existe toda uma multidão de corajosos que enfrentam a situação, mas o mundo continua com uma tendência perigosíssima à direita. E a direita lasca as minorias. Não gosta de indígena, não gosta de negro, de imigrante”, avalia Cátia. “Lá de cima do palco eu tenho coragem, fico com 4 metros de altura. Mas no asfalto eu não me exponho muito não, sem me expor eu já recebo muita raquetada.”
Cátia acredita, porém, que a arte tem seu poder -e é aí que ela atua. “Quando uma canção entra, ela cria como se fosse um organismo dentro de você que começa a gerar frutos, a se expandir. Como um baobá. E você começa a pensar diferente, a se transformar.”
LEONARDO LICHOTE / Folhapress