VANCOUVER, CANADÁ (FOLHAPRESS) – Do veterano Cai Guo-Qiang à jovem revelação Lim Wenhui, artistas que abraçaram ferramentas de inteligência artificial (IA) foram celebrados neste ano no TED, conferência com mais de 70 palestras que aconteceram nesta semana em Vancouver, no Canadá.
No palco dos TED Talks, as imagens nos três telões gigantes também foram criadas com IAs. E, do lado de fora do auditório, pelos corredores do centro de convenções, um mini museu foi montado para comemorar o encontro da arte com a nova tecnologia.
Cai contou como criou seu próprio programa de inteligência artificial, o cAI, enquanto Wenhui exibiu as imagens surrealistas do seu projeto “Nice Aunties” (tias legais), feitas em softwares de imagens geradas a partir de comandos de texto.
Com mais de 40 anos de carreira, Cai ficou famoso pelos experimentos com pólvora, tanto em pinturas como em grandes instalações ao ar livre com fogos de artifício. No palco do TED, o chinês contou que a imprevisibilidade da pólvora que ele tanto admira foi o que o aproximou das pesquisas com IAs, ferramentas também pouco controláveis.
O cAI é alimentado com seus trabalhos, arquivos e áreas de interesse, como personagens históricos e contemporâneos que o artista admira.
Como testamento da devoção do TED às novas tecnologias, Cai fez seu TED Talk em mandarim e foi traduzido simultaneamente em inglês por uma tradutora cuja voz era a mesma do artista, um artifício criado por um programa de IA.
“A pólvora me ajudou com minha personalidade tímida e a me libertar numa sociedade reprimida. Sua imprevisibilidade me deixa desconfortável e alegre ao mesmo tempo. E isso é semelhante às minhas interações com a IA”, disse Cai.
“O cAI é meu trabalho de arte, mas também um parceiro de diálogo e colaboração. No futuro, poderá até mesmo criar arte sozinho.”
Ainda que considere IA um tanto “perturbadora”, o artista espera que a ferramenta ajude a instigar a criatividade do mundo das artes de hoje, que ele classificou de “fraco e conservador”.
“Espero que possamos transcender as dimensões atuais da cognição humana”, disse. “E quem sabe revelar segredos celestiais e abrir uma porta para civilizações interespécies.”
Tias surreais
Certamente as personagens de Wenhui parecem espécies de outro planeta. Seu projeto é inspirado na cultura maternal de países asiáticos onde tias e avós desempenham um papel central, seja para criticar ou mimar os mais jovens.
A artista de Singapura encontrou nos programas de IA, como Midjourney, o caminho mais curto entre suas ideias e o resultado final. “Fiquei viciada”, disse Wenhui.
Ela criou um universo (“Auntieverse”, algo como “universo das tias” em português) baseado nas mulheres de sua família, como suas 11 tias que, apesar de serem cheias de personalidades e humor, sofriam pressões sociais e falta de apoio. Sua avó, outra grande influência em sua vida, passou seus últimos 20 anos acamada e com demência.
Muitas vezes imaginava uma realidade alternativa onde elas estavam se divertindo, rindo, conversando, curtindo a vida”, afirmou Wenhui, que começou a postar seus experimentos no Instagram (@Niceaunties) no começo de 2023.
As avós e tias aparecem em cenários exuberantes, como dançando no calçadão de uma praia, ou bem surrealistas, como enroladas em sushis gigantes e relaxando numa tigela de macarrão.
Uma imagem pode levar entre meia hora e 30 horas, dependendo de quanto a artista quer mexer no resultado do Midjourney. Para ela, o programa funciona como um parceiro artístico e não como ferramenta.
Wenhui trabalhou por 20 anos como designer em firmas de arquitetura antes de virar artista. “Era uma profissão de disciplina e regras, trabalhando em equipe para cumprir instruções e orçamentos do cliente”, disse.
Ao pisar no auditório do TED deste ano para ver as 11 sessões com mais de 70 TED Talks, o visitante é recebido por três telas gigantes com imagens criadas pelo artista canadense Stuart Ward usando os programas de IA Midjourney, Topaz, Leonardo and Magnific.
“No ano passado, usamos apenas uma imagem de IA [nos telões de boas-vindas] e foi terrível, muito caricatural, pixelado”, comentou a chefe de produções de TED, Mina Sabet. “Desde então, tudo mudou rapidamente, acelerou demais.”
Ao receber os temas das sessões, como “sonhadores” ou “construtores de pontes”, Ward gerava as imagens e ajustava de acordo com as vontades da equipe de Sabet. A executiva não achou o processo mais fácil do que trabalhar sem IA, apenas bem diferente.
“Os humanos são bons de entender a marca e de interpretar o feedback que damos. A IA não”, disse Sabet. “Acho que ainda falta conexão emocional.”
Museu de novidades retrô
Nem toda obra trabalhada na IA tem um acabamento futurístico como os trabalhos de Wenhui, Cai e Ward.
Num estande dos corredores do TED, o Misalignment Museum (algo como “museu do desalinhamento”) celebrava obras feitas com a tecnologia, quase todas numa estética retrô, incluindo um aparelho de TV das antigas.
Bastava ficar alguns segundos em frente à TV para ouvir a voz do naturalista David Attenborough, com seu característico sotaque inglês. Ele começava a narrar o cenário de quem olhava para a TV, como se fossem passarinhos na natureza. O casaco vermelho da reportagem ganhou menção como uma bela plumagem.
A obra é do programador Charlie Holtz, que combinou o software GPT-4V e tecnologia de clonagem de voz para criar a versão de Attenborough (não-autorizada).
“Quero mostrar como a IA está onipresente na sociedade. Você vê essa TV velha e não imagina. O contraste é surpreendente”, disse Audrey Kim, curadora e criadora do museu, que tem uma sede em San Francisco (EUA) desde setembro.
Uma das obras mais populares fazia uma leitura da palma da mão. O trabalho usa um programa de IA treinado por um livro de um especialista esotérico, aliado a um scanner para analisar as proporções dos dedos e linhas da mão.
“Queremos educar as pessoas sobre o que é IA. Quero criar anticorpos sociais”, afirmou Kim, que no passado trabalhou no Google e numa empresa de carros autônomos.
“Quanto mais gente entender o básico da tecnologia, melhor para todos. Temos que ser mais críticos em como queremos avançar com IA”, continuou. “As conversas nas comunidades de IA são muito acaloradas, polarizadas. O museu tem funcionado como um território neutro.”
O artista Neil Mendoza exibia “Spambots”, feita com meia dúzia de latinhas de Spam (carne de porco processada), com bracinhos que digitavam uma versão do livro “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, como se o autor fosse um porco.
Para Mendoza, IA é só mais uma ferramenta. Será usada por artistas preguiçosos para copiar as obras dos outros, e por artistas bons que vão criar trabalhos originais.
“A IA vai fazer a realidade ficar mais complicada. As pessoas vão ficar mais céticas e menos confiantes, o que é ruim”, disse Mendoza. “Mas espero que com o tempo elas fiquem também mais espertas.”
FERNANDA EZABELLA / Folhapress