Enchente em São Leopoldo afeta 75% dos moradores, que esperam chance de voltar para casa

PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Atingida por uma enchente histórica do rio dos Sinos, a cidade de São Leopoldo, a 35 km de Porto Alegre, vive uma situação de calamidade sem igual. Na cidade de 240 mil habitantes, mais de 180 mil pessoas acabaram atingidas diretamente pela enchente (75% do total). Mais de 10 mil pessoas estão desabrigadas, e foram registradas seis mortes.

O rio dos Sinos atingiu a marca histórica de 8,20 m na madrugada do dia 4, extravasando o muro dos diques e danificando o sistema de contenção de cheias. A última medição, às 17h deste domingo (12), apontou 5,77 m. Entretanto, devido às novas chuvas no Rio Grande do Sul até esta segunda (13), o alerta de um repique da enchente permanece.

A analista de governança de TI Thais Deparis de Miranda, 29, está abrigada na casa de familiares após a água cobrir os dois pisos do sobrado em que ela mora com o marido. Ainda não se tem ideia do tamanho do prejuízo. “Acredito que perdemos tudo, pois já faz uma semana que a casa está coberta d’água”, disse.

Longe de casa, ela passou seu primeiro Dia das Mães com a filha Aurora, de dez meses. “Com tudo que está acontecendo, valorizo mais cada momento com ela e agradeço sempre a Deus por estarmos todos vivos e com saúde”, diz Thais.

Ela conta que, daqui para frente, vai valorizar mais os momentos em família e pensar menos em bens materiais. “Acho que, diante desse cenário todo, recebi o melhor presente do mundo que é poder abraçar minha filha.”

Thaís e o marido ergueram móveis e deixaram sua casa no dia 3, quando a prefeitura emitiu um comunicado pedindo que pessoas que morassem perto dos diques do rio dos Sinos fossem a um lugar seguro.

Ela e outros parentes moram no mesmo bairro. Parte da família também teve seus comércios e locais de trabalho afetados. “Minha mãe perdeu a cozinha onde trabalhava, minha comadre, a pizzaria”, diz.

Apesar disso, acredita que, aos poucos, ela e sua família vão se reerguer. “Vamos precisar ter ainda mais garra e força de vontade, mas não tenho dúvidas que conseguiremos.”

“Nunca tivemos um volume de água e uma enchente tão grande como essa. Choveu em 48 horas quase 630 mm, uma chuva histórica”, diz o prefeito Ary Vanazzi (PT). “O nosso dique foi projetado na enchente de 1941 e depois se repetiu na de 1965. Essa enchente agora foi 60 cm maior de que foi projetado em 1941.”

A água extravasou os diques, passando por cima dos muros. Segundo o prefeito, são 34 mil casas embaixo d’água. “Se não tivéssemos o dique, teríamos uma tragédia incalculável aqui”, disse Vanazzi.

O prefeito conta que fez uma ação com bombeiros e voluntários para uma força-tarefa a partir do dia 4 à noite. O foco atual das operações já passou dos resgates, a maior parte já feitos, e agora envolve ações de levar remédios, comida e outros mantimentos para pessoas necessitadas em bairros ilhados.

Com a possibilidade de uma nova enchente de grande porte, Vanazzi pede às pessoas que não voltem para suas casas pelo menos até quarta (15). “A previsão de chuva é muito elevada, e o rio aqui pode chegar aos mesmos patamares que chegaram lá no auge da enchente.”

A prefeitura pensa nos próximos passos, como a recuperação de 18 escolas inundadas e outros serviços básicos. “Estamos contratando mais de 500 pessoas, 100 caminhões e 45 escavadeiras para a gente fazer a limpeza da cidade”, diz.

Vanazzi também vai solicitar ao governo federal a elaboração de três programas: um para recursos de compras de produtos domésticos da linha branca; outro para linha de créditos para material de construção; e um terceiro para apoiar pequenos e microempresários que perderam tudo. Segundo ele, essas medidas podem “inverter a queda e começar a recuperar a economia”.

“É uma situação catastrófica”, afirma a jornalista Letícia Fagundes. Sua casa não foi atingida pela água, mas muitos amigos e familiares perderam tudo que tinham.

Preocupada com a propagação de notícias falsas, ela diz que está apurando notícias e divulgando em seu perfil pessoal para combater a desinformação. “Os populares às vezes fazem vídeos, e jogam na internet. Tem gente que rouba esses vídeos e bota uma narração por trás completamente distorcida. Isso é fake news”, diz.

Além de fazer a apuração de notícias, ela foi à linha de frente nas chamadas “bocas”, aonde barcos de resgate chegavam para deixar as pessoas retiradas de casa e agentes de saúde aguardavam para prestar primeiros-socorros.

Ela também buscou atender à alimentação das equipes. “As pessoas que atuam nos resgates ficam com fome e não se dão conta, trabalham oito horas seguidas sem comer porque ficam naquela adrenalina de ajudar e não conseguem parar.”

Segundo ela, o apoio ocorre até em uma conversa, na escuta. “A gente tem que mais escutar nesse momento do que falar.” Letícia elogia o trabalho dos voluntários e diz que não havia como traçar uma estratégia que segurasse um desastre natural desta proporção.

Morador do centro de São Leopoldo, o publicitário Andrei Krummenauer, 26, deixou seu prédio na terça (7) com uma pequena muda de roupas, notebook, documentos e sua gata de estimação. Ele saiu com água na altura do peito até o caminhão do Exército que o resgatou e o levou a um ponto seguro.

Dali, foi para Taquara, cidade de sua família. O alagamento já recuou em sua rua e o abastecimento de energia foi retomado. Ele pretende voltar para casa no fim do mês.

Andrei diz que já estava atento ao nível da água quando outros bairros foram afetados no dia 3, mas percebeu que a situação ficaria pior quando viu um barco passando em sua rua no domingo (5), e a água já havia atingido o primeiro lance de escada do edifício em que mora.

“Eu e o pessoal do prédio, talvez para tranquilizar nossas cabeças, tínhamos esperança de que a água não subiria tanto na nossa rua.” A vontade era de deixar o local, mas ele diz que não tinha certeza de como estavam acontecendo os resgates, nem queria tirar a prioridade dos casos mais urgentes.

“Nos dias subsequentes nós mantivemos a calma, visto que estávamos com mantimentos e com uma reserva de água potável.”

Segundo ele, a situação ficou mais tensa à noite. “A gente não sabia nenhuma notícia de fora e ficávamos à mercê dos sons que ouvíamos no escuro.” Apesar disso, conta que todos conseguiram manter, dentro das circunstâncias, um clima ameno.

“Se tem algo positivo que podemos tirar de tudo isso, é ver como existe muita fraternidade e solidariedade na gente que não desenvolvemos no dia a dia”, diz Andrei.

“Em dois anos morando lá, minha interação com meus vizinhos não passava de um ‘bom-dia’. Nos três dias em que fiquei ilhado, conheci suas casas, famílias, conversamos e até demos risada juntos. Acredito, e espero, que estejamos mais preparados emocionalmente para o que o futuro nos aguarda.”

CARLOS VILLELA / Folhapress

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