Contra frio de 7ºC, caixa de leite vira isolante térmico em abrigo no RS

PORTO ALEGRE, RS (UOL/FOLHAPRESS) – Pessoas alocadas em abrigo de Porto Alegre dormiram encolhidas embaixo de uma pilha de cobertor, diante dos 7 graus marcados na última noite.

O frio é uma experiência sensorial. A partir de um estágio, a pele reclama, o nariz escorre e nem meias de lã esquentam os pés. Os gaúchos chamam de “encarangar” a sensação de ficar paralisado pelo frio.

Gambiarra térmica com caixas de leite e cobertores. Abrigados em Porto Alegre precisaram criar mantas feitas a partir de caixas de leite coladas entre paletes e colchões, que também são usados juntos para aumentar o isolamento térmico.

Medidas providenciais. A noite exige estratégia porque o abrigo realça o frio. O pé direito alto do barracão não segura o calor, e os vidros e portas abertos aumentam a circulação de ar – dificultando a propagação do vírus da gripe, mas deixando o ambiente mais frio.

Zumbis do frio. O UOL passou a madrugada no abrigo Centro Vida, em Porto Alegre. Testemunhou a maioria dos 550 abrigados dormindo, mas, uma parte grande deles também vagava enrolada em cobertores lilás. Com as casas inundadas a mais de uma semana, falta paz de espírito para pregar os olhos.

Estrutura contra o frio no abrigo Centro Vida: 550 colchões e paletes; 650 isolantes feitos de caixa de leite e 2.750 cobertores.

DIA A DIA NO ABRIGO

Operado e inconsolável. João Otávio Souza da Silveira, 53, está com as duas mãos enfaixadas. Os ossos foram quebrados a pedradas como punição por reagir a um assalto. Ele foi operado três dias antes de ser expulso de casa pela enchente e, agora, a perda dos móveis e eletrodomésticos dói tanto quanto as mãos, mas a perda da liberdade é maior.

Falta de autonomia e decisões de terceiros. Este é o décimo segundo dia em que ele senta a mesa sem escolher o que vai comer. O café da manhã não é forte como Otávio gosta, e não é possível escolher se o almoço vai ser feijão, arroz e bife, macarrão, ou qualquer outro prato: “Tu come o que te servem”, diz. A roupa que veste também não é opção – é um voluntário quem acha, na pilha de doações, e entrega uma calça que caberá em Otávio.

Sagrado silêncio. Otávio abandonou sua rotina e vive um cotidiano repleto de inconvenientes. O abrigo tem privacidade zero, e o silêncio é uma raridade. Sempre tem alguém conversando, ouvindo mensagem de voz com som no talo ou criança correndo.

“Tu não tem mais controle da vida. Apesar de estar acolhido, eu me sinto indefeso. Mas seria hipócrita se não visse o que fazem por nós”, disse João Otávio.

RESGATE NA ENCHENTE

Otávio foi acordado pelo megafone nas primeiras horas da manhã de 4 de maio. Naquele momento, agentes da Defesa Civil suplicavam que os moradores da Vila Asa Branca deixassem suas residências. Ele tentou argumentar que morava numa casa de dois andares e estaria seguro, mas os agentes insistiram para que ele entrasse na viatura e argumentaram que as mãos poderiam infeccionar.

“Tive um momento de lucidez, foi a melhor coisa que eu fiz”, avalia Otávio, que acredita que poderia ter morrido se tivesse ficado.

Sem dimensão da tragédia. Ele não tinha noção do tamanho da catástrofe e não entendeu a multidão de encharcados levada para o mesmo abrigo que ele. Começou a compreender a dimensão da enchente ao olhar notícias no celular.

“Pensei: tô vivo! Graças a Deus. Se não tivesse vindo, tava morto”, disse João Otávio.

Otávio não contou imediatamente aos dois filhos o que estava passando. Quando souberam da situação, deram bronca no pai e por enfrentar tantas dificuldades sem os procurar. João Otávio também não quis ficar abrigado na casa deles. Para o pai e avô, mudar para casa de um deles tiraria o espaço e conforto de quem mais ama.

Controle remoto e o “uniforme de descanso”. Otávio gostaria de se espichar no sofá e escolher o que assistir, mas agora só tem o celular – por onde surgem notícias e vídeos da enchente que fazem Otávio ter vontade de chorar. Nessas horas, conversa com os filhos. Além disso, ele era apegado a uma calça e casaco que vestia após chegar do trabalho e tomar banho. “Era um trapo. Só que eu me sentia de férias dentro dele”. Agora, fazem quase duas semanas que a roupa preferida está embaixo d’água.

Perda afetiva que a água levou. Apesar de achar estranho sofrer por isso, o coração de Otávio está partido porque perdeu um garfo. Ele explica que desde os 4 anos come com o mesmo talher, que fazia parte do faqueiro da mãe e foi escolhido por Otávio ainda na infância: “Era do tamanho da medida certa de comida”.

“Eu me alimentei com a comida dela com aquele garfo. Este objeto simbolizava minha ligação com minha mãe e se perdeu”, disse João Otávio.

Esta é perda material e emocional de um único desabrigado. Há ao menos 76.580 pessoas em abrigos e com histórias de dor no Rio Grande do Sul.

FELIPE PEREIRA / Folhapress

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