Brasil não está preparado para crimes cometidos em seitas, dizem especialistas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Denúncias como aquela feita à Folha de S.Paulo por um grupo de 16 ex-integrantes da comunidade Osho Rachana, na Grande Porto Alegre, têm ocorrido pelo país. Os ex-membros da Comuna, como é chamada, se reuniram para denunciar uma rotina de abusos psicológicos, manipulações, exploração financeira e do trabalho e episódios de agressão física que dizem ter sofrido durante os anos em viveram no local.

Prem Milan, 68, cofundador da comunidade e do centro Namastê, que aplica seu método, nega as acusações. Leia aqui.

Procurada, a Polícia Civil do Rio Grande do Sul informou que o caso está sob investigação na 1ª Delegacia de Polícia de Viamão.

São Paulo, Minas Gerais, Ceará e Bahia também têm casos de líderes carismáticos de grupos terapêuticos ou religiosos sectários que são alvos de investigações e de processos na Justiça. O caso mais célebre dos últimos anos, no entanto, ocorreu em Goiás, onde o médium João Teixeira de Faria, o João de Deus, foi condenado a 118 anos de prisão por crimes sexuais. Sua defesa anunciou recorrer da sentença.

“A minha percepção, como promotora de Justiça que já enfrentou um caso dessa natureza, é de que os profissionais do direito do Brasil não estão preparados para lidar com esse tipo de crime”, afirma Grecianny Cordeiro, do Ministério Público do Ceará (MPCE).

Ela atuou no caso de um falso guru que ministrava cursos em Fortaleza, nos quais coletava informações de medos e traumas dos discípulos para depois manipulá-los. Ele abusava sexualmente dos homens jovens do grupo em nome de uma suposta evolução espiritual.

Segundo Cordeiro, hoje as autoridades policiais, promotores, defensores e juízes brasileiros não compreendem “a situação de extrema fragilidade que levou aquela pessoa a cair num estelionato emocional” e acham que “é coisa de filme americano e não faz parte do mundo real”.

Para a advogada Thayná Silveira, especialista em crimes de influência indevida, geralmente cometidos por lideranças dogmáticas e religiosas, “o despreparo para a escuta desses casos gera um processo de revitimização de quem faz a denúncia, o que muitas vezes leva as vítimas a desistirem de dar prosseguimento às denúncias”.

“As vítimas são descredibilizadas ou mesmo ridicularizadas, o que leva a mais sofrimento e a impunidade”, afirma ela, que assessorou diversos casos envolvendo lideranças dogmáticas.

Depois que a Folha de S.Paulo revelou as denúncias de um grupo de 16 ex-integrantes do Namastê e da comunidade Osho Rachana, no início de maio, recebeu áudios com depoimentos de outras 30 pessoas. Elas endossam os relatos feitos pelos denunciantes na reportagem, mas pedem anonimato.

Para a promotora paulista Celeste Leite dos Santos, presidente do Instituto Brasileiro de Atenção e Proteção Integral a Vítimas (Pró-Vítima), a primeira dificuldade desses casos é que a própria vítima demora para se entender como tal e para “juntar forças para buscar ajudar”.

“Objetivamente, essas pessoas até poderiam ter procurado a polícia, mas desde que elas não estivessem numa condição de vulnerabilidade”, explica ela, que já atuou em casos do gênero em São Paulo. “A pessoa está tão envolvida na rede que não consegue se desvencilhar.”

De acordo com a promotora, “a força do grupo, que parece proteger as pessoas, na verdade, as fragiliza porque uma pessoa confia que a outra sabe o que está fazendo, e quem está operando mesmo é uma liderança”.

Para a ativista e consultora jurídica Tatiana Badaró, a Comuna tem características de seita, que define como “um grupo com dogmas, que se afasta da sociedade, se considera superior a ela e cria um discurso maniqueísta de ‘nós versus eles’.”

Ex-vítima de um líder da maçonaria baiana chamado Jair Tércio, condenado a 12 anos de prisão e foragido, ela se tornou pesquisadora sobre abuso em meios religiosos. A Folha de S.Paulo procurou seu advogado e a Fundação Ocidemnte, da qual ele foi fundador, mas não obteve resposta.

Badaró afirma que “a falta de conhecimento sobre esse assunto é o que faz com que casos fiquem travados em delegacias, promotorias e tribunais”. Mesmo assim, ela avalia que núcleos especializados de algumas promotorias são um pouco mais versados no tema.

No Canadá, diz, uma lei específica foi criada depois que 77 integrantes do culto Ordem do Templo Solar cometeram suicídios, nos anos 1990. “Para garantir a liberdade religiosa e proteger a população de quem se utiliza de um discurso religioso para cometer crimes, colocaram um parágrafo sobre o tema na Lei de Segurança Nacional e passaram a fiscalizar grupos religiosos”, explica.

Ela cita também o caso de uma lei de 2001 da França que buscou conciliar a liberdade religiosa e de consciência e a luta contra a sujeição física e psicológica de discípulos. O texto fala em “abuso fraudulento do estado de ignorância ou vulnerabilidade”.

Maria do Carmo dos Santos, presidente do grupo Vítimas Unidas, afirma que a maior parte dos seus atendimentos são de vítimas de “gurus da nova era” —estilo Osho, definiu— e que os relatos indicam mecanismos de sequestro emocional, em que há quebra de vínculos dos seguidores com familiares e amigos. “São justamente aqueles que podem trazer as pessoas de volta para a realidade”, avalia.

Para ela, o Brasil perdeu uma chance de auxiliar essas vítimas ao deixar igrejas e cultos religiosos fora da lei do protocolo “Não É Não”, sancionada pelo presidente Lula em 2024. “O número de escândalos sexuais em espaços chamados religiosos tem sido maior do que em bares e em shows”, argumenta.

Para Silveira, “o mais importante é que a vítima respeite seu próprio tempo, tenha uma rede de apoio, se possível, um acompanhamento psicológico”. Segundo ela, quem estiver motivado a denunciar deve procurar um profissional especializado que possa acolher e orientar a vítima, além de acompanhar o caso na delegacia ou no Ministério Público.

Para facilitar esse caminho, o Instituto Pró-Vítima criou um site que reúne informações para vítimas sobre conceitos e caminhos: www.infovitimas.com.br .

FERNANDA MENA / Folhapress

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