SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Passados 30 anos, o economista Edmar Bacha avalia que os formuladores do Plano Real foram um tanto otimistas quando acreditaram que a estabilidade propiciada pelo Plano Real seria, por si só, o impulso para um novo ciclo de crescimento econômico. O pacote de reformas desenhado para dar continuidade ao plano era essencial, e essa parte do plano não foi concluída.
“O crescimento não veio como a gente esperava. Por que não veio? Bom, nós fizemos oito anos de reformas, mas aí veio o PT e fez 15 anos de ‘desreformas’ “, afirma Bacha.
“A gente ainda tem um Estado inchado que absorve um terço do PIB [Produto Interno Bruto] e não entrega para a população serviços adequados de saúde, educação, transporte, segurança e infraestrutura, e a economia continua fechada.”
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PERGUNTA – O Brasil não conseguia manter um plano por uns poucos meses. O sr. participou do Cruzado, por exemplo. Agora, comemoramos 30 anos do Plano Real. Por que deu certo desta vez?
EDMAR BACHA – Houve um aprendizado com os planos anteriores. Essa foi a grande diferença. Alejandro Foxley, primeiro ministro da Fazenda do Chile após a ditadura de Augusto Pinochet, é meu amigo, tão amigo que ele pode me dizer assim: ‘Bacha, agradeço muito a vocês brasileiros e a nossos companheiros argentinos por terem se redemocratizado antes da gente, porque fizeram tudo errado e, agora, eu sei o que não é para fazer’.
P – Vou reformular, então. Quais erros não foram repetidos?
EB – Quase nenhum. Os planos anteriores eram choques. O Real foi um programa pré-anunciado com três fases. Antes de passar de uma fase para outra, o Congresso precisava aprovar algum tipo de documento legal para ficar tudo nos conformes. Essa diferença formal foi a mais importante. Agora, por que a gente pode fazer desse jeito, anunciado? Porque não teve congelamento, apesar de o presidente Itamar Franco querer muito, até o último dia. E teve a URV [Unidade Real de Valor, moeda escritural do plano]. Avisamos que a gente ia revisar [a moeda]. Aí alguém pergunta o que é revisar, e a gente disse que começava com a URV valendo um dólar. Todo mundo entendeu.
P – Para as novas gerações, que não conheceram a hiperinflação, o sr. podia resgatar o ambiente da época e como se deu a reunião da equipe que desenvolveu o plano?
EB – Primeiro teve a etapa PUC [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro], onde as ideias foram germinadas de forma acadêmica. Estamos falando dos anos de 1982 a 1984. No grupo estávamos eu, André Lara Resende, Pérsio Arida, Pedro Malan, Gustavo Franco, Winston Fritsch, mais Chico Lopes, Vinicius Carneiro, Eduardo Modiano.
Em 1988, o PSDB foi criado. Assinei a carteirinha junto com todos os criadores do partido, e me tornei economista do PSDB. Também assinaram a carteirinha Winston, Gustavo, Elena Landau. Pedro nunca assinou, mas sempre esteve próximo. Nós éramos os economistas do PSDB, e como tais, a gente se reunia com alguma periodicidade com José Serra. Se presumia que, quando o PSDB fosse para o governo, quem ia ser ministro da Fazenda era Serra. Ninguém tinha nenhuma dúvida sobre isso.
Agora faz um clique e entre Itamar Franco. Ele demite três ministros da Fazenda e nomeia, de surpresa, Fernando Henrique Cardoso para a pasta. Fernando Henrique está lá em Nova Iorque, muito satisfeito com a posição de ministro das Relações Exteriores. Foi pego de surpresa. Tentou outros nomes, mas não colou. Aceitou, e, tendo aceito, ele pensou, a quem recorro?
Que eu saiba, ele ligou para três pessoas. Armínio Fraga, que estava em Nova York, Pedro Malan, em Washington, e para mim aqui, que estava na PUC. Tinha acabado de dar uma aula quando o telefone tocou. Ele me convocou para ir a Brasília no dia seguinte. Eu fui com a Elena. Aos cardeais do PSDB, manifestei a minha extrema preocupação com aquela movimentação. O Covas me disse assim, ô, Bacha, essa não é uma decisão do Fernando, é uma decisão do partido. Você é o economista do partido, você vem conosco. Não sei se você se lembra do Covas direito. Não se discutia com ele.
Comigo entraram o Winston e o Gustavo. Aí encontramos o Murilo Portugal. Não mexemos no Banco Central, que estava com Paulo Cesar Ximenes. Clóvis Carvalho veio de São Paulo para ser o número dois do Ministério. José Serra e a equipe dele no Congresso estavam dando apoio.
O que a gente faz? O PAI, Programa de Ação Imediata, para arrumar a casa. Aumentar os impostos, criar a contribuição provisória para a movimentação financeira. Reorganizar as relações do Banco Central com o Tesouro. Renegociar as dívidas dos estados e municípios. Acabar com a negociação da dívida externa. Enfim, dar uma arrumação nas contas públicas, preparando para o futuro governo que vai vir daqui a um ano e meio. Era um pequeno bando de Brancaleone.
Em agosto, o Itamar demite o Ximenes sem falar para o Fernando Henrique. Achamos que ele ia entregar o chapéu Fernando Henrique convocou a reunião, aquela que deu no papelzinho azul [primeiro rascunho do plano de estabilização, inspirado nas ideias de diversos integrantes do governo, que levaria ao Real]. Essas ideias já eram correntes, mas não tão especificadas como ficou no papelzinho azul. Fernando Henrique ficou fascinado.
P – Tantos pais e nenhuma mãe. Por quê?
EB – A mãe era para ser a Elena, mas não quis ir para o governo. Entrou quando vieram as privatizações, que foi uma fase importante.
P – O Real sobreviveu, mas o PSDB não…
EB – Isso foi inacreditável!
P – … e o PSDB ficou muito associado ao Real…
EB – Fernando Henrique só se elegeu duas vezes por causa do real. O partido, no entanto, não tinha uma âncora, como o PT. O PSDB veio como um grupo de iluminados políticos, de alta qualidade, com uma assessoria econômica de elite, e nenhuma base social. Quando se esgotou o efeito do real, o partido se dissolveu. A velha geração não teve sequência na nova geração, com o mesmo quilate.
Mas, com base no real, elegemos Fernando Henrique por dois mandatos e fizemos governadores em São Paulo por 20 anos. Demos um jeito em São Paulo, mas oito anos não foram suficientes na Presidência para fazer tudo que era necessário.
P – Numa entrevista para a Folha de S.Paulo, lá atrás, o sr. disse que a proposta do Real era controlar a inflação com crescimento. A missão foi cumprida?
EB – Não foi. Dá para dizer que o Plano Real tinha quatro objetivos. O principal era controlar a inflação. Feito isso, era preciso parar o processo de concentração de renda. Conseguimos isso também, inclusive com programas sociais e transferência de renda. Ainda há desigualdade, mas bem minorada.
Outro problema era o balanço de pagamentos. O Brasil vivia um crise atrás da outra de balanço de pagamentos, crise da dívida externa. Na primeira fase do Real, continuaram ocorrendo, porque demoramos a sair da âncora cambial e ir para âncora da taxa de juros. Fizemos forçados por uma crise, mas fizemos. Desde então, o Brasil não tem problema de balanço de pagamentos. Hoje, tem reservas à beça e superávit na balança comercial.
Agora, o crescimento não veio como a gente esperava. Por que não veio? Bom, nós fizemos oito anos de reformas, mas aí veio o PT e fez 15 anos de “desreformas”.
Junto com o Real, nós mandamos para o Congresso 63 emendas constitucionais. Tudo o que você pode imaginar. Todas as maldades que cabiam na minha cabeça, na cabeça do Serra e na cabeça do Nelson Jobim. Como você sabe, são cabeças muito maldosas [risos]. O Congresso rejeitou 62 e aprovou o Fundo Social de Emergência, que era o que a gente pedia, porque se não aprovassem, a gente não fazia o plano. Então, essas 62 emendas estavam ali. Era o conjunto de reformas que o país precisava implantar.
P – Alguma coisa foi feita, não?
EB – O Lula, nos dois primeiros anos, ainda fez alguma coisa. Depois, na hora que veio a bonança [alta no preço das commodities que gerou crescimento interno e global], falou que não precisava fazer mais porcaria nenhuma. Em cima da bonança veio o pré-sal. O mundo parou de ter crise, por causa da China. Então, o Lula não fez mais nada em termos dessas reformas estruturais, de que o país necessitava, especialmente a abertura econômica.
A reforma tributária só agora está vindo, e toda despedaçada. A reforma do Estado nem foi tocada. Toda a questão das carreiras no setor público nunca foi devidamente estruturada.
A gente ainda tem um Estado inchado que absorve um terço do PIB e não entrega para a população serviços adequados de saúde, educação, transporte, segurança e infraestrutura, e a economia continua fechada. Vou repetir aqui o que já disse em outra entrevista. Brasil podia decolar, mas o Lula não deixa.
Sempre falo de abertura comercial como uma questão de produtividade. Mas o que realmente me toca é essa injustiça dessa elite infame, que explora monopolisticamente o mercado nacional com preços surreais e não deixa entrar aqui produtos estrangeiros de boa qualidade e preços baixos para que os pobres e a classe média deles se beneficiem, como nós ricos já nos beneficiamos.
Olha o paradoxo da situação. Nós ricos podemos gastar o que quisermos lá fora sem pagar imposto aqui. Na volta, a gente ainda passa no free shopping e pode gastar US$ 1.000 sem pagar um tostão. No dia que os pobres descobriram um canalzinho chinês pela internet, onde eles podem comprar coisinhas, o governo quer taxar. Por que o governo quer taxar os pobres e não taxa os ricos de vez?
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RAIO-X
Edmar Bacha, 82
Mineiro de Lambari, formou-se em economia pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e é um dos primeiros economistas brasileiros com doutorado no exterior, pela Universidade Yale (EUA), em 1968. Com intensa vida acadêmica, lecionou em instituições no Brasil e no exterior. Em 1974, publicou uma fábula sobre a Belíndia, reino imaginário que fundia Bélgica e Índia e se tornou uma analogia à desigualdade brasileira. Estava no grupo que elaborou o Plano Cruzado, em 1986, tentativa frustrada de debelar a inflação, e, depois, entre os formuladores do Plano Real, de 1994, que pôs fim à hiperinflação no Brasil. Foi presidente do BNDES e do IBGE. Sócio fundador e diretor do Instituto de Estudos de Política Econômica Casa das Garças, é membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Ciências
ALEXA SALOMÃO / Folhapress