BUENOS AIRES, ARGENTINA, E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O presidente argentino, Javier Milei, será a grande ausência da cúpula do Mercosul na capital do Paraguai, cujos principais eventos ocorrem neste domingo (7) e nesta segunda-feira (8). Ao mesmo tempo, seu não comparecimento -um fato de pouquíssimos precedentes e visto como um sinal de enfraquecimento do bloco- é também o principal ponto de conflito do bloco formado por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai e uma novata Bolívia.
O ultraliberal tem impulsionado uma agenda ultraconservadora no que é considerado o principal instrumento de integração da América do Sul, o que desperta preocupação no governo Lula (PT).
Neste primeiro semestre, a diplomacia de Milei travou a criação de um subgrupo de trabalho no Mercosul para impulsionar a participação feminina no comércio regional. Foi uma proposta que partiu dos paraguaios, um dos membros mais conservadores do bloco. Brasília e Montevidéu deram luz verde, mas Buenos Aires vetou o processo.
A atual gestão da Casa Rosada também atua para paralisar o Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos (IPPDH) do Mercosul, com sede justamente na capital argentina. De acordo com um diplomata com conhecimento do assunto e que fala reservadamente, sob Milei a diplomacia argentina busca de maneira sistemática criar um labirinto de questões técnicas e burocráticas que, na prática, resultam na paralisia de institutos como o IPPDH.
Quando assumiu a Presidência em dezembro e colocou a chancelaria sob a batuta da economista Diana Mondino, Milei comunicou ao Brasil que sua prioridade para o Mercosul seria estritamente econômica, deixando de lado agendas sociais. O que causa surpresa a pessoas que acompanham a guinada ideológica argentina é a criação de barreiras em assuntos que eram consenso entre os países-membros do bloco há décadas.
No caso do IPPDH, os argentinos têm pleiteado uma racionalização do órgão e uma revisão total de seu funcionamento e do uso de verbas. Em um relato público recente ao conselho do grupo, a diretora do instituto, a brasileira Andressa Caldas, relatou que hoje há uma paralisia na contratação de funcionários e na renovação de cargos temporários.
Afirmou ainda ter feito “reiterados pedidos” de respostas, mas que “o processo de consulta a um dos Estados-membros” tem demorado de maneira incomum, uma referência não nominal à Argentina. A reportagem procurou Caldas, que não respondeu.
A trava argentina ao funcionamento do IPPDH já foi tema de conversa da chanceler Mondino com seu homólogo brasileiro, o ministro Mauro Vieira. Para destravar o funcionamento do instituto, o Brasil estaria disposto inclusive a rever a sua contribuição orçamentária e crescê-la, segundo pessoas envolvidas no tema.
Hoje a Argentina assume a maior fatia do orçamento (62,5%) do instituto, seguida pelo Brasil (24,9%). O IPPDH está localizado em um dos locais mais simbólicos de Buenos Aires, em um prédio do chamado “ex-ESMA”, um antigo centro de tortura militar da época da ditadura que hoje abriga um complexo de museus.
A atual cúpula do Mercosul em Assunção foi preparada para celebrar o ingresso da Bolívia no bloco com mais de 30 anos de história.
Mas quem se encaminha ou já está em Assunção para a cúpula diz estar preocupada com o que esperar da participação argentina. Com a ausência de Milei -que, após protagonizar conflitos com o brasileiro Lula (PT) e com o boliviano Luis “Lucho” Arce, decidiu ir a Santa Catarina para uma conferência de políticos conservadores, em um aceno ao bolsonarismo–, os argentinos serão representados por Mondino.
A chanceler argentina era vista como uma possível força moderadora na política externa da Argentina. Mas a Casa Rosada, personificada na figura de Karina Milei -a irmã do presidente e secretária-geral do gabinete–, tem tomado as rédeas e pleiteado uma agenda de forte caráter ideológico. Os exemplos se acumulam e vão além do Mercosul.
A atuação argentina em outro espaço multilateral, a Assembleia-Geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), em Assunção no final de junho, fez crescer essa desconfiança.
As resoluções da OEA já estavam praticamente todas negociadas quando Buenos Aires pediu para reabrir várias delas. Quatro áreas principais pareciam incomodar o país: gênero, emergência climática, restrição aos discursos de ódio e a Agenda 2030 da ONU.
Sempre que qualquer um desses assuntos aparecia em uma resolução, os argentinos buscavam suprimir os termos. Sobre gênero, argumentavam que para eles essa definição cabe ao sexo biológico (homem ou mulher) e que cotas ou políticas de paridade apenas atrasam as mulheres. Sobre coibir discursos de ódio, alegavam que a prioridade é a liberdade de expressão. Termos próximos ao combate à desigualdade e à pobreza extrema também não eram bem-vindos.
Cada país da OEA pode manifestar sua discordância acerca das resoluções negociadas por meio de uma nota de rodapé incorporada ao texto. Os números falam por si: as resoluções finais desse encontro têm 46 notas de rodapé da Argentina. O segundo país com mais observações do tipo são os Estados Unidos, com oito delas.
A figura-chave desse debate argentino na OEA foi Ursula Basset, uma advogada de direito da família próxima a Karina Milei que a irmã do presidente acolheu na chancelaria argentina. Ela liderou diversas discussões no encontro da OEA, algo visto como uma “amostra” da atuação argentina nos órgãos internacionais.
Enquanto Milei estará em Santa Catarina na companhia de bolsonaristas, em Assunção os olhos estarão voltados para sua diplomacia e também para as boas-vindas à Bolívia, que acaba de aprovar em seu Senado a entrada no Mercosul e ratificar a medida em sanção presidencial.
O feito ocorre pouco mais de uma semana após uma tentativa de golpe militar frustrada em La Paz contra Luis Arce. Ainda faltam em média quatro anos para que o país andino consiga aderir a todos os protocolos exigidos pelo Mercosul.
MAYARA PAIXÃO E RICARDO DELLA COLETTA / Folhapress