PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Um imenso caminhão amarelo de uma empresa de mudanças entrou às 8h desta segunda-feira (8) no palácio de Matignon, residência e local de trabalho do primeiro-ministro da França. A imagem viralizou, por simbolizar a transição de poder após as eleições da véspera.
Gabriel Attal, 35, ainda é o chefe de governo, embora ao 12h tenha ido ao Palácio do Eliseu entregar o cargo a Emmanuel Macron. O presidente pediu que Attal fique, para garantir “a estabilidade” do país. Leia-se: não deixar a França sem governo a duas semanas dos Jogos Olímpicos de Paris.
Attal continuará a viver no Matignon, então, até que se decida quem vai sucedê-lo. Até a noite de segunda, isso era uma incógnita total.
Pela primeira vez na Quinta República, o regime político francês desde 1958, o Parlamento foi fatiado em três blocos de tamanho quase igual. “Os representantes da nação são um espelho quebrado”, comparou o cientista político Pascal Perrineau, professor de Sciences Po, renomada faculdade onde estudaram tanto Macron quanto Attal.
Em um texto publicado nas redes sociais da escola onde leciona, Perrineau prevê um período difícil para a política francesa, com governos frágeis, capazes apenas de tocar o dia-a-dia indispensável da administração e impotentes para aprovar grandes reformas consideradas necessárias. “A impotência governamental, se perdurar, não vai melhorar uma situação já bastante deteriorada. Pelo contrário”, apontou.
Em tese, o presidente teria que escolher o primeiro-ministro dentre as fileiras do bloco que conseguiu mais cadeiras na Assembleia Nacional –neste caso, a esquerdista Nova Frente Popular (NFP). Mas é uma coalizão tão heterogênea que, sintomaticamente, os próceres dos partidos que a compõem não foram vistos juntos em público desde a eleição.
Ao longo do dia, os líderes da NFP se recusaram a aventar nomes para o cargo de primeiro-ministro, para não alimentar especulações. Na noite desta segunda, reuniram-se para debater o método de escolha do nome a ser levado a Macron.
O elefante na sala é Jean-Luc Mélenchon, 72, o líder do partido A França Insubmissa (LFI). Ele é intragável para a direita, para o centro e até para boa parte da esquerda, sobretudo o Partido Socialista de Olivier Faure, 55, sigla pela qual o ex-presidente François Hollande, 69, elegeu-se deputado no domingo.
“Eu faço parte da solução, não do problema”, disse Mélenchon à noite, em tom conciliador.
Um nome neutro, por assim dizer, que vem sendo citado nas últimas horas é o da líder do partido Ecologistas, Marine Tondelier, 37. Ela ganhou notoriedade durante a campanha por seu estilo combativo nas mesas-redondas televisivas e seu indefectível paletó verde.
Em comum, Mélenchon e Tondelier têm o fato de não serem deputados -nem se candidataram. Não é preciso ser membro da Assembleia Nacional para virar primeiro-ministro. Os precedentes são vários, sendo o último deles o de Jean Castex, premiê entre 2020 e 2022 com perfil mais técnico do que político.
Não se descarta a hipótese de que Macron possa fazer o mesmo agora, indicando um primeiro-ministro alheio à política e um ministério “de notáveis”, à falta de uma maioria parlamentar clara.
Perrineau, o cientista político, não vê a solução com bons olhos: “Cheira a tecnocracia em um contexto onde a revolta contra as elites está no grau máximo”, diz no artigo. Mas lembra que, na Itália, um governo desse tipo, comandado por Mario Draghi entre 2021 e 2022, “recolocou o país nos trilhos”.
Teoricamente, é possível governar sem maioria absoluta. Foi o que fizeram Gabriel Attal, nos últimos seis meses, e sua antecessora, Elisabeth Borne. O governo dispunha de 250 cadeiras, 39 a menos que o necessário. Mas a falta de maioria foi prejudicial a ambos os líderes. Para aprovar a reforma das aposentadorias, Borne teve que recorrer a um dispositivo constitucional que dispensava a aprovação em plenário.
Se com 250 deputados já foi complicado exercer o poder, é difícil imaginar como a esquerda o fará com menos de 200. Ainda mais considerando seu programa de governo, ambicioso e controvertido.
A NFP garante que seu programa é viável. A revogação da reforma das aposentadorias e o aumento de 15% do salário mínimo seriam, por exemplo, financiados em parte por um imposto sobre grandes fortunas.
À Folha, a economista Julia Cagé, também professora de Sciences Po, é peremptória: “O Brasil fez isso no governo Lula, pelo menos no Lula 1 [entre 2003 e 2007]: aumento de salários como um fisco mais progressivo. A NFP foi a única a apresentar um programa detalhado, com números, e um orçamento equilibrado.”
A ex-maioria macronista, por sua vez, animou-se com a derrota menos pesada que o previsto pelas pesquisas. A atual presidente da Assembleia Nacional, Yaël Braun-Pivet, chegou a propor na segunda uma aliança entre centro, esquerda e direita, excluindo a LFI e a RN. Nesse caso, ela mesma poderia ser a sucessora de Attal. Como era de esperar, a proposta deixou os “insubmissos” de Mélenchon indignados.
Enquanto esquerdistas e macronistas trocam farpas, a Reunião Nacional (RN), de ultradireita, lambe as feridas. Ainda zonzos com o resultado, os líderes da RN parecem ter entrado no primeiro estágio do luto, a negação.
À porta da sede do partido, jornalistas perguntaram ao jovem presidente da sigla, Jordan Bardella, se a proposta de barrar certos cargos públicos aos franceses com dupla nacionalidade foi fatal para a campanha. “Lamento não termos sido compreendidos”, balbuciou Bardella, que dois dias antes já falava como futuro primeiro-ministro.
É difícil medir a influência da polêmica dos “binacionais” na derrota inesperada da RN. Mas o episódio relembrou aos eleitores a embocadura xenófoba e racista que o partido tenta apagar há vários anos.
Da mesma forma, os jornais franceses levantaram durante a campanha dezenas de publicações nas redes sociais e declarações constrangedoras, antissemitas e até filonazistas, de candidatos da RN.
É inegável, porém, que o resultado da eleição pode se transformar em uma oportunidade para a RN. Uma eventual paralisia administrativa pode obrigar Macron a convocar novas eleições daqui a um ano, prazo mínimo entre duas dissoluções da Assembleia Nacional. E, se ficar à margem da confusão, a ultradireita pode se beneficiar.
Ciente disso, Marine Le Pen e Jordan Bardella repetiram à exaustão, nas últimas 24 horas, que “a vitória foi só adiada”.
Apesar da derrota, a RN tem outros motivos de consolo. Ignorando-se as coalizões, tornou-se o maior partido da Assembleia Nacional, com 126 deputados. Em 2017, ainda com o antigo nome de Frente Nacional, eram apenas 8.
ANDRÉ FONTENELLE / Folhapress