Obama faz apelo por união democrática e zomba Trump por obsessão com ‘tamanho das multidões’

CHICAGO, EUA, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Vinte anos após o discurso histórico que o projetou para o estrelato, Barack Obama voltou a uma convenção democrata em Chicago, seu berço político, para passar o bastão da mensagem de esperança que marcou a sua candidatura em 2008 a Kamala Harris.

O ex-presidente e a mulher, Michelle, são os dois nomes mais populares do partido. A ex-primeira-dama fez um discurso incisivo e enérgico. O marido foi ofuscado, como ele próprio reconheceu.

Cada um a seu modo buscou passar a mesma mensagem: é preciso uma união nacional democrática, não importa a filiação partidária, para reconstruir a coalizão que elegeu o primeiro homem negro à Presidência, e impedir o que seria um retorno catastrófico de Donald Trump.

Obama definiu Trump como “um bilionário de 78 anos que não parou de choramingar sobre seus próprios problemas desde que ele desceu as escadas rolantes douradas [da Trump Tower] há nove anos”. “São queixas e reclamações que na verdade só pioraram agora que ele está com medo de perder para Kamala.”

Em um dos momentos que provocaram risos da plateia, ele disse que o republicano tem obsessão com o “tamanho das multidões” em seus comícios, fazendo um gestual de duplo sentido com as mãos.

“Mais importante de tudo, Donald Trump quer que pensemos que esse país está irremediavelmente dividido entre nós e eles, entre os americanos de verdade que o apoiam e os outsiders que não. E ele quer que você pense que vai ficar mais rico e mais seguro se você der a ele o poder de colocar aquelas ‘outras pessoas’ de volta no lugar delas”, disse o ex-presidente, em referência a minorias e migrantes.

“É um dos truques mais antigos na política, vindos de um cara cujo teatro ficou bem repetitivo. Não precisamos de mais quatro anos de ameaças e caos. Nós já vimos esse filme e sabemos que sequências costumam ser piores”, prosseguiu.

“Não vai ser fácil. O outro lado sabe que é mais fácil jogar com os medos e o cinismo das pessoas”, disse. “Nosso trabalho é convencer as pessoas que a democracia na verdade entrega resultados. E não podemos apenas apontar para o que nós já fizemos ou nos apoiar nas ideias do passado. Nós precisamos traçar um novo caminho à frente para responder aos desafios de hoje.”

O ex-presidente elencou algumas das —ainda raras— propostas de campanha de Kamala, como o plano de construir 3 milhões de moradias e a defesa do direito ao aborto.

Obama condenou a crescente polarização política americana, o que em sua visão leva a um cenário em que presume-se o pior daquele que não concorda integralmente com você. Os conflitos resultantes dessa tensão estão levando as pessoas a desistirem de votar, alertou.

“Nós precisamos lembrar que todos temos pontos cegos, contradições e preconceitos, e que se quisermos ganhar aqueles que não estão prontos para apoiar o nosso candidato, nós precisamos ouvir as suas preocupações, e talvez aprender algo nesse processo”, completou.

O apelo para uma política mais compreensiva e agregadora foi um traço que percorreu todo o discurso do ex-presidente.

“Tanto quanto qualquer política ou programa, eu acredito que o que nós desejamos é o retorno para os EUA em que nós trabalhamos juntos e cuidamos uns dos outros. Uma volta ao que Lincoln chamou, na véspera da guerra civil, de ‘nossos laços de afeto'”, afirmou.

“Eu sei que essas ideias podem parecer muito ingênuas agora”, reconheceu, culpando a atual cultura que recompensa o que não perdura: “dinheiro, fama, status, likes”. “Nós não confiamos tanto mais uns nos outros porque nós não dedicamos um tempo para conhecer um ao outro, e nessa lacuna entre nós, políticos e algoritmos nos ensinam a caricaturar uns aos outros e ‘trollar’ uns aos outros e temer uns aos outros.”

“Os EUA estão prontos para um novo capítulo, para uma história melhor”, emendou. “Sim, ela pode”, disse, referindo-se a Kamala. “Nós estamos prontos para uma presidente Kamala Harris.”

Obama destacou a biografia de Kamala ao longo do discurso, relembrando seu histórico como procuradora —e inclusive dizendo que ela pressionou o seu governo em favor de pequenos proprietários na época da crise imobiliária do fim dos anos 2000.

Apontado como um dos arquitetos da pressão para a saída de Joe Biden da corrida, Obama reconheceu a importância do atual presidente logo no início de seu discurso, afirmando que uma das melhores decisões que tomou como candidato à presidência foi escolher o então senador como seu vice.

“Nós nos tornamos irmãos”, disse. “Conforme nós trabalhamos juntos por oito anos, o que eu passei a admirar em Joe não foi apenas sua inteligência e experiência, mas sua empatia e decência, sua resiliência conquistada a duras penas, e sua crença inabalável de que todos nesse país merecem uma oportunidade justa”, afirmou.

“Nos últimos quatro anos, esses são os valores que os EUA mais precisaram”, emendou, para pouco depois falar: “agora o bastão foi passado adiante”.

Conhecido por sua performance bem-humorada, o ex-presidente abriu seu discurso em uma chave mais leve, dizendo-se ser a única pessoa “estúpida o suficiente para falar depois de Michelle Obama” e que está se sentindo otimista porque “esta convenção sempre foi muito boa para jovens com nomes engraçados que acreditam que tudo é possível”.

Antes do ex-presidente, Michelle havia dito que a “esperança estava voltando” e também usou o seu discurso para criticar o líder republicano. “Por anos, Donald Trump fez tudo ao seu alcance para que as pessoas tivessem medo de nós”, afirmou. “A visão de mundo limitada dele o fez se sentir ameaçado pela existência de duas pessoas trabalhadoras, de alta escolaridade e bem-sucedidas que, por acaso, eram negras”.

Outro destaque da noite foi o marido de Kamala, Douglas Emhoff, que se apresentou em um discurso bem-humorado como um filho da classe média e que, assim como Kamala, trabalhou no McDonald’s quando jovem.

Ele falou sobre aspectos privados da companheira, contando como os dois se conheceram em um encontro às cegas, e o papel de Kamala como madrasta dos dois filhos de Emhoff, que a chamam de “mamala”.

Judeu, ele também disse que a vice o incentivou a adotar a bandeira do combate ao antissemitismo. “Kamala é uma guerreira alegre. Ela está fazendo pelo país o que ela fez a vida toda pelas pessoas que ela ama. A sua paixão vai beneficiar a todos nós quando ela for a nossa presidente”, afirmou.

A mensagem foi uma continuidade da reproduzida em um vídeo transmitido no telão, intitulado “a lutadora”. Na véspera, o tema foi “a protetora”.

Após dedicar sua abertura a Joe Biden, a convenção do Partido Democrata passou para o ataque no segundo dia, escalando seus integrantes mais populares e trumpistas arrependidos para seu palco principal.

O principal foi o prefeito de Mesa, no estado-pêndulo de Arizona, John Giles. “Eu me sinto um pouco deslocado aqui, mas me sinto mais em casa do que no Partido Republicano atual”, disse.

“Nosso GOP [bom e velho partido, na sigla em inglês] foi sequestrado por extremistas e transformado em um culto. O culto a Donald Trump”, afirmou, comparando em seguida o empresário a uma criança.

“Eu tenho uma mensagem urgente para a maioria dos americanos que, como eu, estão no centro político: o Partido Republicano de John McCain acabou. E nós não devemos nada para o que sobrou dele. Então vamos virar a página. Vamos colocar o país em primeiro lugar. Vamos colocar os adultos na sala que nosso país merece”, completou.

Stephanie Grisham, ex-secretária de imprensa do empresário, no período em que ele foi presidente, e chefe de gabinete da ex-primeira-dama Melania, também discursou. Ela foi a primeira funcionária de alto escalão do governo Trump a pedir demissão após o 6 de Janeiro.

“Atrás das câmeras, Trump zomba de seus apoiadores, chamando-os de ‘habitantes do porão’. Quando as pessoas estavam morrendo na UTI, ele estava bravo porque as câmeras não estavam voltadas para ele. Ele não tem empatia. Não tem moral. Não tem fidelidade à verdade”, disse.

“Kamala Harris fala a verdade. Ela respeita o povo americano. E ela tem meu voto”, completou.

Na mesma linha, Kyle Sweetser, que afirma ter sido um eleitor de Trump, também explicou por que mudou de lado. “Votei em Trump porque ele disse que ajudaria trabalhadores da indústria. Mas percebi que ele não estava a meu favor, mas sim ao seu próprio bolso”, disse.

“Eu não sou de esquerda, mas acredito que nossos líderes devem despertar o melhor de nós, não o pior. por isso eu vou votar em Kamala Harris.”

Democratas também aproveitaram para reforçar a ligação –negada pela campanha de Trump– entre o ex-presidente e o Projeto 2025, um calhamaço de propostas conservadoras radicais capitaneado pela Fundação Heritage e impopular entre o eleitorado.

Em um gesto algo cênico, o deputado Malcolm Kenyatta, da Pensilvânia, apontado como o estado mais importante para a eleição neste ano, levou ao palco uma obra com o título “Projeto 2025” na capa. “É interessante, porque geralmente os republicanos estão tentando banir livros, mas eles estão tentando enfiar esse goela abaixo.”

“São todas as 900 páginas dele. É um plano radical para nos levar ao passado, falir a classe média, e elevar os preços para as famílias trabalhadoras como a minha e a sua. Sob o Projeto 2025, uma família com dois filhos ganhando US$ 75 mil ao ano vai pagar US$ 1.800 a mais em impostos federais”, afirmou.

A economia foi o enfoque dos ataques da noite –uma tentativa de virar o jogo em um território em que o eleitorado avalia Trump como uma escolha melhor do que Kamala.

Bernie Sanders, uma liderança da esquerda americana, repetiu seu mantra de que os EUA “precisamo de uma economia que funcione para todos nós, não apenas para os bilionários”.

O senador defendeu o fim de contribuições privadas a campanhas, o reconhecimento do direito à saúde como um direito humano, o aumento do salário mínimo e de professores, e a redução do preço de medicamentos.

“Esse não é um programa radical. Deixe-me dizer o que é um programa radical é: o Projeto 2025 de Trump”, atacou.

Bernie fugiu do script que a organização havia antecipado a jornalistas ao cobrar a necessidade de um cessar-fogo em Gaza. A fala foi aplaudida.

Democratas também levaram ao palco dois nepobabies: os netos de Jimmy Carter e John Kennedy.

Jack Schlossberg, que além de integrar a dinastia política mais famosa dos EUA é um influenciador nas redes sociais, relembrou os marcos da carreira de seu avô: o homem mais jovem a ser eleito presidente, o primeiro católico, o que levou o homem à lua. E o comparou a Kamala.

“O chamado à ação de JFK é agora nosso porque, mais uma vez, o bastão foi passado para uma geração mais nova, para uma líder que compartilha a energia, a visão e o otimismo com o futuro do meu avô”, disse.

“Kamala Harris carrega o legado de meu avô”, disse Jason Carter. “O corpo dele pode estar fraco hoje, mas seu espírito está mais forte do que nunca, e ele não vê a hora de votar em Kamala Harris”, completou, sobre o quase centenário democrata.

Os democratas transformaram o roll call, processo protocolar em que a delegação de cada estado declara o voto de seus delegados no candidato já sabido, em uma balada. As luzes do United Center foram apagadas, e um DJ colocava uma música associada a cada lugar. Nevada, por exemplo, berço da banda The Killers, foi de “Mr. Brightside”. Nova York, de “Empire State of Mind”, de Jay-Z. Texas, com “Texas Hold ‘Em”, de Beyoncé.

Mas o maior destaque foi a Geórgia, que levou à pista do evento o rapper Lil Jon. O músico foi a atração principal da balada pós-convenção mais disputada da semana, na segunda.

Também levaram celebridades à convenção Nova York, com o diretor Spike Lee, e o Texas, com a atriz Eva Longoria.

Kamala e Walz fizeram uma rápida aparição após a votação, em uma transmissão no telão central da convenção a partir de Milwaukee, onde fez um comício nesta terça no mesmo local que sediou a convenção republicana, no mês passado. A participação foi confusa, ainda mais porque a democrata começou sua fala dizendo “boa noite, Milwaukee”.

FERNANDA PERRIN E VICTOR LACOMBE / Folhapress

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