Em ‘Babygirl’, Nicole Kidman desafia os desejos e prazeres sexuais em papel ousado

VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – “Vergonha!” Foi com esse grito desaforado de um jornalista (homem), acompanhado de algumas vaias —logo em seguida, respondidas com fortes aplausos que o filme “Babygirl” foi recebido na primeira sessão matinal para a imprensa, nesta sexta, 30, no Festival de Veneza. E tal reação polarizada deve ser apenas o começo: tem tudo para configurar a tônica de como o longa, dirigido pela holandesa Halina Heijn, deverá ser recebido mundo afora quando estrear.

O longa, que disputa o Leão de Ouro, fala sem comedimento de sadomasoquismo, prazer feminino, infidelidade conjugal e abuso de poder, em uma trama que traz Nicole Kidman naquele que talvez seja o trabalho mais ousado de sua carreira.

Em cena, ela interpreta Romy, a diretora de uma poderosa empresa do ramo da robótica, que tem uma vida de sucesso profissional e familiar. Mas não é uma mulher feliz em termos sexuais —ela está casada há 19 anos com um diretor de teatro, Jacob, vivido por Antonio Banderas, mas nunca conseguiu ter um orgasmo sequer com o marido, que ela julga convencional demais na cama.

Criada em meio conservador, Romy nunca aceitou bem suas próprias fantasias eróticas, que envolvem humilhação, submissão e alguma violência. Sente-se culpada, anormal, e tem vergonha de pedir ao marido que as realize, então só dá vazão aos seus desejos com práticas masturbatórias.

A situação muda quando ela conhece Samuel, interpretado por Harris Dickinson, de “Triângulo da Tristeza”, um estagiário de sua empresa. Galanteador e petulante, o moço desperta a sexualidade da chefe, sobretudo quando lhe diz, com a cara de pau que só as pessoas mais desapegadas do próprio emprego possuem: “Você tem cara de quem gosta de ser mandada”.

Apesar de arriscadíssima, a cantada funciona, e os dois acabam se envolvendo, em uma relação em que o sexo sadô-masô dá as cartas, seguindo bem-sucedida até o dia em que abandona o campo meramente sexual e se espraia para o âmbito profissional e familiar de Romy. Ali, uma importante demarcação é ultrapassada, e os encontros entre os dois jamais voltarão a ser como antes.

O filme ecoa temas e situações de longas como “A Professora de Piano”, de 2001, de Michael Haneke, e o mais recente “Tár”, de 2022, de Todd Field. Mas não tem aquela carga opressiva desses dois longas e é um bocado mais leve em espírito —é também um pouco menos controlado e contundente que esses dois filmes, ainda que o trabalho de direção de Heijn seja admirável. Ela sabe, inclusive, incluir elementos humorísticos bastante salutares em alguns momentos, que poderiam resultar por demais carregados e impedir esse arejamento que o torna tão especial.

A depravação sexual, no filme, não é um problema em si, e talvez os mais puritanos achem que a franqueza como certas cenas são tratadas não passe de sensacionalismo ou protopornografia. As sequências sexuais possuem uma alta carga erótica, mas ela se dá muito menos pela nudez (que nem é tanta assim, dados os temas do filme) e bem mais pelo quanto as relações de poder podem ser excitantes na cama. A primeira vez em que os personagens de Kidman e Harrison se beijam no ambiente de trabalho é mais excitante que qualquer outro encontro libidinoso entre os dois.

O filme é narrado de um ponto de vista feminino, mas não foge de mostrar a complexidade da protagonista, que demonstra algumas atitudes bastante questionáveis, tanto no âmbito conjugal quanto no profissional. Mas o filme está claramente do lado de Romy e do seu direito a ter prazer – ou ao menos de se resolver consigo mesma essa questão.

Kidman tem em “Babygirl” a oportunidade de mostrar o quanto pode ser uma atriz sofisticada. Ela tem um impressionante domínio sobre a personagem, expressando com perfeição suas hesitações, travas e impulsos. Neste ano, a atriz já tinha protagonizado um longa em que também se envolvia com um rapaz mais jovem, vivido por Zac Efron, “Tudo em Família”, e é provável que ela tenha utilizado esse filme menor como laboratório para o que de fato faz em “Babygirl”, porque ali ela está bastante precisa em tudo o que faz. Há quem diga que ela já desbancou o favoritismo de Angelina Jolie ao prêmio de atuação, como a Maria Callas de “Maria”.

Também na disputa pelo Leão de Ouro, o argentino “El Jockey”, dirigido por Luis Ortega, causou bem menos alarde no Lido. O ator Nahuel Pérez Biscayart, de “120 Batimentos por Minuto”, tem uma atuação de destaque, na pele de um jóquei do hipódromo de Buenos Aires, que tem problemas com o álcool e o vício em narcóticos. Mas como é um excelente profissional, ele é financiado por um grupo de mafiosos, que tentam mantê-lo na linha.

O filme é puro virtuosismo estético, com Ortega brincando de imitar o cineasta finlandês Aki Kaurismäki, no modo sardônico dos personagens e na estilização visual. Mas tem um problema fatal para um filme que se pretende uma comédia: não é em nada engraçado. Ainda assim, o filme teve seus defensores no boca a boca pelo Lido.

BRUNO GHETTI / Folhapress

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