SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Eu não devo nada a ninguém”, afirma Silvio de Abreu, sentado em uma poltrona de seu escritório, onde as estantes guardam uma estatueta do Emmy Internacional, seis do Troféu Imprensa e cerca de 2.000 DVDs de filmes e séries. “Aprendi com meus erros, gostei dos meus acertos e tenho uma vida ótima. Não sou nem um pouco modesto. Não mesmo.”
No caso dele, a modéstia de fato soaria pouco convincente. Silvio, afinal, se firmou ao longo dos anos como um nome incontornável da teledramaturgia brasileira. Ao lado de Gilberto Braga, Glória Perez, Aguinaldo Silva e Manoel Carlos, o artista, de 81 anos, formou o primeiro escalão de autores da TV Globo.
Na emissora, foi responsável por fenômenos como “Guerra dos Sexos”, “A Próxima Vítima” e “Rainha da Sucata”, novelas que souberam retratar e ficcionalizar a cidade de São Paulo com elementos da comédia pastelão e do melodrama folhetinesco.
Em 1996, no auge do sucesso como autor, ganhava R$ 53 mil por mês, valor que equivale a R$ 452 mil atualmente. A informação está no livro “Gilberto Braga: O Balzac da Globo”, dos jornalistas Arthur Xexéo e Mauricio Stycer.
Em 2014, o poder de Silvio sobre a teledramaturgia aumentou. Naquele ano, assumiu a direção de dramaturgia diária da Globo e passou a ter a prerrogativa de aprovar e vetar enredos.
À frente do departamento, conquistou prêmios, mas também acumulou polêmicas. A mais ruidosa se deu em 2015, durante a novela “Babilônia”.
Escrita por Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga, a trama recebeu ataques homofóbicos após um beijo entre Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg. Rejeitada pelo público, carregou por sete anos o título de novela das 21h menos vista da história.
Em “Gilberto Braga: O Balzac da Globo”, João Ximenes diz que intervenções feitas pela emissora teriam destruído a espinha dorsal da trama.
“Tinha intervenção? Sim, tinha”, diz Silvio de Abreu, acrescentando que interveio porque Gilberto Braga ficou doente e não pôde comandar a equipe. Com isso, a trama teria perdido coerência. “Queria ajudar, mas não aceitavam nada do que eu tinha proposto. Tive que brigar. Foi um inferno.”
Em 2020, Silvio deixou a emissora após quatro décadas. O autor diz que decidiu encerrar seu contrato após mudanças que o fariam ficar subordinado a outras áreas. “Além disso, eu já estava vendo que a Globo ia ficar como está hoje.” E como está a emissora atualmente? “Não está bem, né?”
Para ele, a presença de influenciadores em novelas é um dos sintomas disso. “Colocar influenciador em novela só porque ele tem milhões de seguidores é um tiro no pé. É a mesma coisa que me contratar para ser diretor do Corinthians. Vai ser um desespero. Não entendo nada de futebol”
Recentemente, a emissora escalou para as novelas Jade Picon e Rafa Kalimann, influenciadoras que tiveram a atuação criticada nas redes sociais. “Se for para televisão para passar vergonha, é melhor continuar sendo influenciador.”
Ele, inclusive, não vê com bons olhos o desempenho da nova geração de atores. “A novela não tem a mesma força por ser muito inferior em todos os aspectos. O elenco é um deles.”
Silvio diz que outra diferença é que os autores escreviam novelas sozinhos, o que para ele conferia personalidade às obras. Atualmente, os folhetins são escritos com o auxílio de múltiplos profissionais. É a chamada sala de roteiro. “Isso tirou deles o estilo. Esses autores de hoje não têm grife.”
Diante desse cenário, considera que a teledramaturgia enfrenta uma fase conturbada, em que tem apostado em remakes por falta de ousadia. A origem disso estaria no medo de perder dinheiro, já que a televisão não lucra com publicidade como antigamente. “Mas justiça seja feita. Essa falta de dinheiro não é só na Globo. No streaming é a mesma coisa.”
A afirmação é de alguém que trabalhou na Max durante um ano e meio após sair da emissora. Na plataforma, supervisionou a produção de novelas como “Beleza Fatal” e “Dona Beja”, produções que ainda não foram lançadas.
Em março do ano passado, deixou a empresa porque ela teria começado a priorizar as séries em detrimento das novelas. “Preferi sair a fazer algo que não queria.”
Pedir as contas não é uma dificuldade para ele. Foi isso o que fez logo em sua primeira novela na TV Globo.
Ele estreou como autor em “Éramos Seis”, fenômeno de audiência exibido pela TV Tupi, em 1977. O sucesso o levou para a Globo, onde fez “Pecado Rasgado”, novela que não teve o mesmo êxito. “Eu escrevia uma coisa e o diretor dirigia outra. Deu tudo errado.”
Quando a novela chegou ao fim, saiu da emissora e voltou para o cinema, área na qual já era um nome em ascensão. Após o fracasso na TV, emplacou um sucesso nas bilheterias. Dirigiu “Mulher Objeto” –longa de 1981 que levou cerca de 1,2 milhão de pessoas aos cinemas.
Na filmagem da última cena, recebeu um telefonema da Globo. Cassiano Gabus Mendes havia infartado e o indicara para continuar a trama “Plumas e Paetês”.
A partir daí, emendou um trabalho atrás do outro e transformou as novelas das 19h. “A Globo exibia nessa faixa comédias leves e românticas. Quando o Silvio entrou, implantou tramas de humor pastelão, inspiradas nas chanchadas e nas comédias americanas dos anos 1930 e 1940”, diz Nilson Xavier, crítico de televisão.
“Guerra dos Sexos”, de 1983, é o exemplo mais emblemático dessa fase. “Foi revolucionário para a Globo. Até então, não eram feitas novelas assim.”
Após outras obras na faixa das 19h, como “Sassaricando” e “Cambalacho”, estreou no horário nobre em 1990, com “Rainha da Sucata”. A trama acompanhava os embates entre os novos ricos e a velha elite paulista.
Já em 1995, escreveu “A Próxima Vítima”, folhetim que inovou ao misturar o melodrama das novelas com o suspense dos filmes policiais.
O cinema, aliás, é uma paixão que acompanha Silvio desde os cinco anos. “Fiquei encantado porque tudo nos filmes era lindo.” É um cenário bem diferente daquele que encontrava em casa.
O autor cresceu num ambiente conflituoso. O avô escondia uma família fora do casamento, a tia era uma cantora frustrada e o tio arrumava briga com todo mundo. “A minha infância daria uma novela. Só que viver o enredo não é tão interessante quanto assisti-lo.”
MATHEUS ROCHA / Folhapress