Casos de racismo e xenofobia provocam debate sobre lei de cidadania na Itália

MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – A jogadora de vôlei Paola Egonu, 25, liderou a conquista da inédita medalha de ouro da Itália e foi eleita a melhor atleta do torneio feminino nas Olimpíadas de Paris. Dias após o título, foi alvo, como já havia acontecido muitas vezes antes, de ataques racistas. Um mural em sua homenagem, com a inscrição “italianidade”, foi vandalizado em Roma.

Egonu é italiana, negra, filha de nigerianos. Nasceu na província de Pádua, no norte do país, mas só obteve a cidadania na adolescência, depois que o pai conseguiu a dele. Esse intervalo entre nascimento e documentação -e seus efeitos- motivou um acalorado debate político na Itália, entre defensores e críticos às mudanças na legislação das cidadanias.

Como Egonu, existem milhares de nascidos na Itália que moram legalmente no país, frequentam a escola, mas não são considerados italianos. Uma criança nascida em solo italiano e cujos pais são estrangeiros pode fazer o pedido de cidadania somente ao completar 18 anos.

No ano escolar encerrado em 2023, havia mais de 900 mil filhos de estrangeiros inscritos nas escolas italianas (11%), da educação infantil ao ensino médio. Destes, 65% nasceram na Itália. Os principais países de origem familiar são Romênia, Albânia, Marrocos, China e Ucrânia.

“São crianças que se sentem italianas, muito frequentemente só conhecem a Itália, mas que em um certo momento descobrem que não são cidadãos do próprio país”, diz à Folha Raffaela Milano, diretora de pesquisa da ONG Save the Children Itália, que compilou os números acima.

A questão costuma aparecer quando uma criança começa a se destacar como atleta e precisa indicar a nacionalidade em competições. Ou antes de uma viagem escolar internacional, ocasião que exige documentos -muitos não têm nenhum passaporte ou não são titulares de vistos na Itália.

“Além desses aspectos práticos, tem a questão do sentimento de pertencimento. Descobrir-se diferente dos próprios colegas, mesmo compartilhando a língua e a paixão por um clube de futebol, cria um problema na construção da própria identidade, algo fundamental para o adolescente”, diz Milano.

Tão logo o caso dos ataques racistas a Egonu veio à tona, o vice-premiê Antonio Tajani, do partido Força Itália, de centro-direita, solidarizou-se com a jogadora e defendeu a mudança na Lei da Cidadania, de 1992, desencadeando um debate nacional.

Pelo texto vigente, a cidadania só é reconhecida no nascimento pelo direito de sangue (do latim, ius sanguinis) -uma criança é automaticamente italiana se ao menos um dos genitores também o é. É esse o critério que permite a descendentes brasileiros, por exemplo, pedir o reconhecimento da cidadania italiana sem limite de gerações, mesmo que não falem o idioma ou nem conheçam a Itália.

Com uma das leis mais restritivas entre os grandes países da União Europeia, a Itália não prevê nenhuma versão do direito de solo (ius soli), que permite a uma criança ter a cidadania do país de nascimento, independentemente da origem familiar. No Brasil, vigoram tanto o direito de sangue quanto o direito de solo. Quem nasce de pais estrangeiros é considerado cidadão brasileiro, desde que os genitores não estejam a serviço de outro país, como diplomatas.

“É uma lei velha, que não representa mais a Itália. Em 30 anos, o quadro do país mudou completamente”, diz Milano. No começo dos anos 1990, quando a norma foi aprovada, a Itália era um país basicamente de emigrados. Em 1991, havia 356 mil estrangeiros vivendo legalmente no país. Hoje, são 5,3 milhões, segundo o Istat (Instituto Nacional de Estatística).

Para Tajani, uma solução é a introdução do direito de escola (ius scholae), que vincula a concessão da cidadania a crianças estrangeiras à conclusão de um ciclo de estudos de ao menos dez anos. “É disso que o país precisa. Um bom italiano é quem acredita na Itália, a conhece e a defende. O mundo mudou, precisamos acordar”, disse ao jornal La Repubblica.

O posicionamento gerou objeção de aliados de governo, como Matteo Salvini, da Liga, da ultradireita. Por outro lado, algum tipo de reforma é defendido por partidos de centro-esquerda, por organizações da sociedade civil e por parte do empresariado e dos prefeitos. Segundo a imprensa italiana, a sigla de Tajani planeja apresentar uma proposta de lei sobre o tema nas próximas semanas.

Além de facilitar a integração de famílias de origem estrangeira, a mudança poderia ajudar a atenuar a crise demográfica que atinge a Itália. Segundo pesquisa da Save the Children, na faixa de 15 a 16 anos, aqueles sem a cidadania italiana são os que mais desejam deixar o país no futuro. “Isso não faz bem à Itália. Esses jovens são um patrimônio importante”, diz Milano.

MICHELE OLIVEIRA / Folhapress

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