Tarsila, no auge de sua popularidade, ganha ampla retrospectiva em Paris

PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Exatamente um ano atrás, Picasso estava em cartaz no Museu do Luxemburgo, por ocasião do 50º aniversário da morte do gênio andaluz. Isso dá uma ideia da importância de “Tarsila do Amaral: Pintar o Brasil Moderno”, mostra que abre nesta quarta-feira (9) no mesmo museu, um dos principais de Paris.

Não que Tarsila (1886-1973) precise da validação europeia para que sua importância na arte moderna seja reconhecida. Mas a retrospectiva parisiense é mais um sinal de sua valorização crescente. Outros indícios foram a badalada exposição no nova-iorquino MoMA, em 2018, os lances cada vez maiores por suas obras em leilões e até a polêmica sobre a autenticidade de um quadro, caso revelado pela Folha de S.Paulo em abril.

Tarsila já tivera obras apresentadas no Luxemburgo, apenas dois anos atrás, na exposição “Pioneiras: Artistas na Paris dos Anos Loucos”. A nova mostra inteiramente dedicada a ela é um tributo a uma artista que não teria sido o que foi sem a influência francesa. Sendo o Luxemburgo um museu estatal, o patrono da exposição é ninguém menos que o presidente da França, Emmanuel Macron.

“Ela viveu aqui, fez sucesso aqui, depois foi embora e foi injustamente esquecida. Mas agora as coisas estão mudando, e Paris se interessa muito mais por tudo que esqueceu ou viu por pouco tempo. A história de Tarsila conta isso também”, diz a comissária da mostra, Cecilia Braschi.

Estarão no Luxemburgo até 2 de fevereiro muitas das obras icônicas de Tarsila: os autorretratos de 1923 e 1924, o retrato do então companheiro Oswald de Andrade (1923), “A Negra” (1923), ” A Caipirinha” (1923) —que em 2020 bateu o recorde para uma pintura vendida em leilão no Brasil: R$ 57,5 milhões -, “A Cuca” (1924), “O Touro (Boi na Floresta)” (1928), “Urutu” (1928).

Mas também está exposto muito material menos conhecido, de fases posteriores em que a artista explorou novos temas, como as transformações da São Paulo onde viveu.

O grande ausente é o “Abaporu”, que o Museu de Arte Latino-americano de Buenos Aires (Malba) se recusou a ceder. “Fizemos de tudo”, relata Cecilia Braschi. “Ele não sai daquele museu. É, como eles dizem, a ‘Mona Lisa’ deles.” A obra-prima, diga-se, foi cedida ao Masp em 2019 para a exposição “Tarsila Popular”, onde provavelmente bateu o recorde nacional de selfies.

Os parisienses terão que se contentar com dois pequenos estudos do “Abaporu” em nanquim. O desfalque em nada diminui o interesse pela retrospectiva.

Também ausente está “A Lua”, adquirido pelo MoMA logo depois da exposição de 2018. Curiosamente, o quadro não fazia parte da mostra novaiorquina, mas o MoMA se sentiu na obrigação de incorporar ao acervo pelo menos um exemplar da brasileira.

“A Lua” tornou-se a primeira pintura de Tarsila em um museu norte-americano. Na França, essa distinção cabe à “Cuca”, que desde 1928 está no Museu de Grenoble. Exposta em um salão parisiense em 1926, ela não recebeu lance em um leilão posterior e foi incorporada ao acervo do Estado francês.

Como reflexo dessa quase total inexistência no Primeiro Mundo, o nome de Tarsila ainda é novidade para a imprensa europeia, que busca naturalmente referências que sirvam de comparação. Em um tour guiado para a imprensa, as perguntas dos jornalistas à curadora Cecilia Braschi eram reveladoras. “Ela conheceu Georgia O’Keeffe?” (Não.) “Ela veio um pouco antes de Frida Kahlo, não?” (Veio.) “Ela encontrou Josephine Baker?” (Certamente.)

Esta é apenas a terceira exposição individual de Tarsila em Paris, e a primeira que abrange toda a carreira. A primeira foi em vida, em 1926, na renomada galeria Percier, onde também expuseram Picasso, Max Jacob e Alexander Calder. A segunda, em 2005, na Maison de l’Amérique Latine, abrangia os períodos em que ela morou na capital francesa, nos anos 1920.

Tarsila chegou a Paris em 1920 pela porta “errada”. Estudou pintura na Academia Julian, “acadêmica” no mau sentido; e expôs no salão da Sociedade dos Artistas Franceses, prestigioso, mas visto como retrógrado. Em razão disso, seus primeiros trabalhos parisienses, mesmo de qualidade indiscutível, passam longe do que já havia de moderno nos anos 1920.

A filha da elite cafeeira paulista se emendou com louvor, porém. Depois de um breve retorno ao Brasil em 1922, logo após a Semana de Arte Moderna, e influenciada por Anita Malfatti, ela volta a Paris disposta a se tornar a “pintora do Brasil”. Aproxima-se de Blaise Cendrars e Constantin Brâncusi, frequenta o ateliê de Fernand Léger, arrisca-se no cubismo e encontra uma nova voz.

“Tarsila fundou, com Malfatti, uma tradição de presenças femininas marcantes, pioneiras até, na história da arte moderna brasileira: de Maria Martins a Lygia Clark, de Anna Maria Maiolino a Beatriz Milhazes, de Adriana Varejão a Sonia Gomes, para citar apenas algumas”, diz Cecilia Braschi, historiadora especialista em arte sul-americana do século 20 e francesa de português fluente.

Um dos méritos da exposição do Luxemburgo é conferir grande importância à obra tardia de Tarsila. Cecilia Braschi quer desfazer a impressão de que esse período menos conhecido da carreira da artista seja inferior: “Para mim, interessava mostrar todas essas evoluções da obra dela. Porque na verdade Tarsila não é apenas a artista incrível dos anos 1920, mas atravessa um período mais longo, até os anos 1960, com todas as mudanças políticas, econômicas e culturais que ocorreram no Brasil.”

O período filocomunista da artista está representado pelo clássico “Operários” (1933). O óleo sobre tela “A Metrópole” (1958), pertencente a uma fase de paisagens urbanas e raramente exposto, retrata uma São Paulo assustadoramente atual, de arranha-céus azulados, onde o verde é confinado ao rodapé e mal se vislumbra a luz do sol.

A partir dos anos 1950, Tarsila revisitou temas da primeira fase modernista. Exemplos claros presentes em Paris são “Paisagem com Flores Rosas” (1963) e “Passagem de Nível III” (1965), ambos pertencentes a coleções dos filhos do magnata das comunicações Roberto Marinho. As casinhas e árvores remetem inevitavelmente a “E.F.C.B.” (1924) e “Palmeiras” (1925).

Na visita guiada para jornalistas, uma repórter fez uma comparação pouco lisonjeira dessa fase tarsiliana com a obra do italiano Giorgio De Chirico (1888-1978), que na velhice “autoplagiou” suas obras-primas da juventude, um pouco por provocação, um pouco por mercantilismo. Embora seja sabido que Tarsila passou por dificuldades financeiras na meia-idade, a curadora não crê que a motivação principal fosse financeira. “O espírito era diferente, as cores eram diferentes”, analisa Cecilia Braschi.

Outro mérito da exposição é não ignorar as contradições do bem-intencionado projeto do movimento antropofágico, composto por privilegiados cuja legitimidade como arautos da diversidade étnica brasileira era discutível.

A ficha técnica na parede ao lado de “A Negra”, hoje alvo de críticas pela representação estereotipada, expõe esse incômodo de forma elegante. O quadro, diz o texto, “reata com a iconografia bem brasileira da ‘mãe preta’, estetizando a figura das mulheres afrodescendentes no papel de amas-de-leite a que foram relegadas por muito tempo”.

De Paris, a exposição vai para o Guggenheim de Bilbao, na Espanha, onde ficará de 28 de fevereiro a 8 de junho do ano que vem.

TARSILA DO AMARAL: PINTAR O BRASIL MODERNO

– Quando De 09 de outubro a 02 de fevereiro

– Onde Musée du Luxembourg – 19 rue de Vaugirard, 75006 Paris França

– Preço A partir de €10

ANDRÉ FONTENELLE / Folhapress

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