Meu tio Geraldo

Eu me considero um sujeito de sorte, a vida me deu dois tios Geraldo, um em Morro Agudo, e outro em Ribeirão Preto. Os dois nutriram de alegria a minha vida, os dois foram imprescindíveis na construção da minha personalidade. Com eles, aprendi a entender o mundo, a descobrir o universo da alma. Agradeço imensamente por estar com eles boa parte da minha existência. Hoje eles estão no andar superior, brincando de renascer.

No último dia do ano, meu segundo tio Geraldo foi embora. Sem saber, ele desenhou na tela dos meus dias, as lembranças mais delicadas e divertidas. Acredito que viver seja um grande filme, cujas cenas são elaboradas com detalhes e encantamentos. E se tem alguma coisa que meu tio esbanjou, foi encantamento.

Comerciante de calçados no centro da cidade, ele passava horas, entre um freguês e outro, contando causos, quase sempre frutos do exagero, mas riquíssimos em criatividade. Eu ouvia as mesmas histórias cem vezes, sem nunca cansar, sem pedir para parar, embora soubesse o fim de todas elas. Mas era a minha forma de adoração. Ele me ensinava como ser convincente, como vender, como entender a psicologia das vendas. Era doutor no assunto, sem nunca ter pisado numa universidade.

Tinha um Dauphine amarelo, e pra quem não sabe, era um carrinho francês, feio e esquisito, que ele lotava no fim de semana, comigo, meu irmão e meus primos, e nos levavam para os lugares mais singulares da nossa região. Foi com ele que conheci Nuporanga , cidade bem pertinho da gente, que tinha uma enorme piscina de águas naturais. Foi com ele que conheci a cachoeira de Batatais, as grutas de Altinópolis e comi o meu primeiro pão de queijo.

Pescador apaixonado, comprou um pedacinho de terra nas barrancas da represa de Volta Grande, em Miguelópolis, e com as próprias mãos, construiu um racho, que tinha um prazer inenarrável de nos convidar a ir, passar um tempo e nos divertir, como nunca.

Ali então, pululavam as histórias, que iam do macabro à mentira dos pescadores. Aquilo tinha o gosto da festa, o cheiro da alegria, a visão do extraordinário. Nadar, pescar, limpar a barrigada dos lambaris, fritar, comer e entender que ser feliz é um ato de desprendimento, de consagração das coisas simples sobre a suntuosidade de um mercado hipócrita e infeliz.

Mas o tempo e suas falsas tramoias vão nos separando, deixando o maravilhoso no escondido terreno da memória, como castigo cruel, como pena pelo isolamento. Conjugamos o verbo sofrer por egoísmo a nós mesmos. Somos vilões de nossos desejos, algozes da nossa satisfação. Vivemos nos enganando em nome do silêncio, das trocas indevidas, das escolhas erradas.

Meu tio Geraldo hoje voltou a brincar. Deve estar em algum lugar do universo celeste, mostrando um calçado de couro, pensando num excursão a alguma cachoeira por lá, comendo um pão de queijo celestial, pescando almas, convertendo infiéis, ensinando a beleza de viver, conjugando o infinito e esbanjando amor. Meu tio Geraldo deve estar ao lado dos seus amigos, irmãos, pai, mãe, da minha tia, da minha mãe e do meu pai. Deve estar sorrindo como sempre, contando os mesmos causos de sempre e fazendo aquele pirão, que só ele sabia fazer.

Meu tio Geraldo mora agora dentro de mim como lição diária de sobrevivência. Vou experimentar um calçado de couro, vou fazer uma viagem pela região, vou comer um pão de queijo, pescar, nadar, limpar a barrigada dos lambaris, só não vou comer o pirão que só ele sabia fazer. Esse, eu vou deixar para saborear quando estivermos juntos.

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